IMPÉRIO DOS SONHOSE A NECESSIDADE DE UM AUTOR COMO DAVID LYNCH

João Rodolfo Franzoni
De um cineasta como David Lynch, falecido em 15 de janeiro de 2025, aos setenta e oito anos de idade, o admirador de Cinema pode esperar uma gama interminável de sensações e ousadia, mas jamais concessões experimentais ou palatáveis ao grande público. Foi ele que ao debutar na direção com Eraserhead (1977), uma cultuada realização acerca da obsessão de um homem por um feto, recebeu de Mel Brooks a notável alcunha de “Jimmy Stewart de Marte”. Com O Homem Elefante (The Elephant Man, 1980), recebeu aclamação crítica, ao narrar a verdadeira e aterradora história de um sujeito deformado que é exibido como atração de circo na Inglaterra vitoriana. E,
com Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), uma visão idiossincrática, estranha, mas sobretudo fascinante do que se esconde por trás das fachadas elegantes dos subúrbios americanos (vale aqui lembrar que, no seriado Twin Peaks, Lynch procurou descortinar o lado obscuro e insuspeito da vida de pessoas comuns de uma cidadezinha dos Estados Unidos), foi aclamado como um dos maiores diretores norte-americanos a despontar nas últimas décadas. Até mesmo, quando se dedicou a uma obra “censura livre”, o singelo História Real (The Straight Story,1999) – a fita narra a história de um fazendeiro que, sem dinheiro, empreende uma viagem de várias semanas a bordo de seu velho trator, a fim de visitar o irmão, que não vê há muitos anos, está doente e mora do outro lado do país –, ele permeou o filme com uma lentidão apaixonante e um tom contemplativo raros no cinema de teor edificante.

Em 2006, David Lynch nos entregou mais uma obra-prima: Império dos Sonhos. E não podemos falar de Império dos Sonhos, sem lembrar da fita anterior do diretor: Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001), em que, narrando a história de uma morena desmemoriada (Laura Harring) e uma loura aspirante ao estrelato em Hollywood (Naomi Watts), Lynch valeu-se de uma conotação onírica exemplar para investigar tanto os conluios existentes na capital do cinema estadunidense quanto para confrontar ideias confortáveis alimentadas pelo espectador com relação à linearidade narrativa, munido de duas atrizes em estado de graça [no filme, Naomi Watts revela-se um vulcão de camadas insuspeitas, algo que não se via desde Kathleen Turner em seu début em Corpos Ardentes (Body Heat, 1981); e, num toque tanto genial quanto de reverência a Alfred Hitchcock (1899-1980), ela é vista usando o mesmo terninho de Madeleine Elster, a personagem de Kim Novak em Um Corpo Que Cai (Vertigo, 1958), a obra máxima sobre a dualidade da natureza humana].
Em Cidade dos Sonhos, David Lynch conduz uma plateia despreparada para uma experiência única, similar àquela que vivenciamos durante um sonho: acontecimentos perdem sua lógica, personalidades são invertidas, seres e eventos parecem não se encaixar nos devaneios produzidos pelo cérebro humano quando adormecido. E faz isso com uma câmera invasiva, que capta olhares de forma esmagadora; e uma produção digna de aplausos, coroada por mais uma trilha sonora exemplar de Angelo Badalamenti (1937-2022), seu compositor habitual.

E, se, ao término da projeção de Império dos Sonhos, sentimos certa frustração, é devido certamente à nossa ânsia de conferir um tratado digno do impacto de Cidade dos Sonhos, que rendeu a Lynch uma terceira e infrutífera indicação ao Oscar de Melhor Diretor. Porém, isso é apenas uma questão de redirecionar tal expectativa. É impossível escapar incólume ao labirinto de ousadias e piração que a protagonista de Império dos Sonhos decide desbravar. O máximo de linearidade extraída de sua trama – um desafio para qualquer crítico ou divulgador – é que Nikki Grace [Laura Dern, musa do cineasta já vista em Veludo Azul e Coração Selvagem (Wild at Heart,
1990)], uma estrela de Cinema, é escalada para o papel principal de uma refilmagem hollywoodiana de uma produção polonesa considerada maldita e, inclusive, abortada durante sua realização décadas atrás. Assim que a dedicação de Nikki ao seu papel esbarra em eventos bastante bizarros, acompanhamos uma distorção de locais e personagens com a assinatura inconfundível de Lynch, que, dessa vez, busca paralelos em Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, para tecer sua jornada – jornada essa que, dirão os menos pacientes, não faz o menor sentido. As pistas estão todas lá: com sua curiosidade irrefreável, Nikki acessa as várias portas localizadas em cantos inesperados, deparando-se com cenários habitados por famílias de coelhos, contrabandistas poloneses e figuras dispostas a um rol considerável de barbaridades.
Não convém interpretar ou encontrar elos para tais recursos narrativos. O espectador atento sabe que eles funcionam à perfeição para o conjunto final e que recusar a tal linearidade combatida por Lynch serve para, na pior das hipóteses, aperfeiçoar discussões sobre o papel do artista e seu poder na defesa de um pensamento ou estilo.
Existe a precipitação de quem prefere creditar pretensão, picaretagem ou elitismo a esse tipo de conduta – território que os profissionais do Cinema Novo reinam imbatíveis.
Entretanto, tal pensamento é próprio de quem está acostumado a uma análise sem um mínimo de profundidade. E, numa época em que há tantas refilmagens e tantos filmes vazios e destituídos de uma assinatura autoral, é absolutamente necessário que David Lynch permaneça extraindo beleza visual e cacofonia de uma viagem mórbida, como essa que o público faz até seu império dos sonhos de David Lynch.

Ao contrário de Cidade dos Sonhos, Lynch desta vez recorreu a uma artilharia pesada, tanto na plasticidade quanto na degradação experimentada, com perverso prazer, por sua heroína. Suas exatas três horas podem mesmo ser consideradas desnecessárias – a sequência que mostra Nikki passando por uma longa agonia numa calçada de Los Angeles, rodeada por mendigos indiferentes ao fato de ela estar se esvaindo em sangue, se fosse retirada do filme, não traria nenhum prejuízo à narrativa –, e a adoção da câmera digital está longe de alcançar um visual satisfatório. No entanto, merece aplausos a decisão de um artista em não recorrer ainda à metalinguagem, alternativa cada vez menos utilizada com sabedoria. E até mesmo poesia e beleza são enxertadas aqui, proeza também da música, de autoria do próprio cineasta, que emula,
com louvor, os acordes soturnos e inebriantes do já citado Badalamenti. Império dos Sonhos é um oásis para quem ainda busca no Cinema amostras substanciais sobre a obscuridade humana. E também é ótimo constatar que, entre ser um cão bem alimentado, mas preso, e um lobo faminto, mas livre, David Lynch opta por se apresentar como o segundo.
Império dos Sonhos (Inland Empire, Estados Unidos/Polônia/França, 2006, 180’)
Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch
Fotografia: David Lynch (não-creditado)
Montagem: David Lynch
Elenco: Laura Dern (Nikki Grace/Susan Blue), Jeremy Irons (Kingsley Stewart), Justin Theroux (Devon Berk/Billy Side), Harry Dean Stanton (Freddie Howard), Diane Ladd (Marilyn Levens), William H. Macy (Freddie Howard), Julia Ormond (Doris Side), Amanda Foreman (Tracy), Grace Zabriskie, Karolina Gruszka, Jan Hencz, Krzysztof Majchrzak, Nastassja Kinski, Laura Harring, Naomi Watts

João Rodolfo Franzoni é jornalista e professor.