BOOGIE NIGHTS – O NASCIMENTO DE UMA OBRA-PRIMA

João Rodolfo Franzoni
Edição: Marco Aurélio Lucchetti
Às vezes, entre tantas superproduções muito comentadas e outras que se tornam sucesso de crítica, um filme consegue sobressair-se e pegar de surpresa olhos despreparados, resultando naquela obra que, além de ser bem-recebida por polos costumeiramente tão antagônicos, se destaca por sua originalidade de concepção e ousadia no registro. É o caso de Boogie Nights, segundo trabalho de Paul Thomas Anderson, que, na época em que realizou o filme, tinha vinte e sete anos de idade.
Boogie Nights estreou em 1997, cercado de atenções, num ano que parecia território exclusivo do fenômeno protagonizado por James Cameron e seu Titanic.
Paul Thomas Anderson vinha de um filme modesto e não muito apreciável, Jogada de Risco (Hard Eight, 1996), que no Brasil foi lançado direto em vídeo e, nos dias de hoje, poucos se recordam de ter marcado a estreia do cineasta.
O espanto não residia pelo fato de haver em Boogie Nights uma radiografia ousada e honesta do cinema pornográfico estadunidense, em meio à ferveção da década de 1970; mas, sim, pelo fato de um diretor de pouca experiência revelar um domínio tão apurado da linguagem cinematográfica, um uso impressionante de câmera – que, entre outras tomadas formidáveis, acompanha uma jovem até seu mergulho numa piscina, durante uma festa – e uma noção de ritmo que jamais se afrouxa no decorrer de suas duas horas e meia de projeção.




Eis um filme que merecia um pedestal só por suas qualidades intrínsecas, não fosse uma contribuição que, passados mais de vinte e cinco anos, ficou evidente nas produções subsequentes de Anderson: sua recusa ao puritanismo vigente na cinematografia hollywoodiana; e a noção mais que bem-vinda de que cinema também é visitado por uma plateia adulta, merecedora de ter sua inteligência respeitada…
Houve quem saudasse Anderson como “o novo Robert Altman”. E, sem dúvida a honraria procede. O hoje falecido criador de Nashville (idem, 1975) e Short Cuts – Cenas da Vida (Short Cuts, 1993) fez fama com a característica de povoar suas tramas com dezenas de personagens e uma câmera que, mesmo solta, tomava a precaução de concentrar-se num determinado ambiente. Entretanto, o que Anderson parece ter incorporado do cinema de Altman foi o estilo naturalista e visceral, em que nada é despejado na tela com a intenção de enfeitar ou chocar. Ao contrário, a preocupação com o realismo é latente. E, se existem aqueles que foram conferir Boogie Nights esperando sexo explícito, inevitavelmente se surpreenderam e se decepcionaram, ao constatarem que ele inexiste na narrativa. Na verdade, há ali um poder de sugestão extraordinário, no qual inúmeras simulações do ato sexual são esgarçadas com impacto e jamais erotizadas. Não se trata de defender a extinção de qualquer ato explícito, apenas reconhecer a capacidade de um novato em desbravar áreas tão admoestadas pelo moralismo vigente.

Nina Hartley (pseudônimo artístico de Marie Louise Hartman), veterana atriz de filmes e vídeos pornográficos, interpretando uma esposa infiel, numa cena de Boogie Nights.
A ousadia para o sexo foi a propaganda levantada, quando a produção começou a render elogios entusiasmados da crítica norte-americana. Mas, felizmente, ninguém foi leviano de reduzi-lo ao escândalo fácil. Surgia ali uma obra madura em sua investigação de seres humanos corroídos pela ilusão oferecida por uma década colorida, uma década na qual discotecas simbolizavam uma espécie de templo aos seres pretensos ao destaque; uma década em que a bandeira do sexo livre havia sido fincada, e surgia o fantasma da AIDS para derrubá-la; e, finalmente, uma década na qual a produção pornográfica de então oferecia seus préstimos como válvula de escape aos excluídos daquela festa toda, sem contar que os diretores podiam ousar com tramas mais ou menos elaboradas, já que ainda não existia o recurso do botão de avanço rápido dos aparelhos de videocassete.

Annette Haven, um dos ícones do cinema pornô norte-americano dos anos 1970.
Para nos situar nesse universo, que, para os padrões atuais de moralismo exacerbado, soa inconcebível, o roteiro (de autoria do próprio Anderson) foca em Eddie Adams (Mark Wahlberg), um adolescente perdido, que enfeita as paredes de seu quarto com pôsteres dos astros Bruce Lee e Farrah Fawcett.
Desprezado pelos pais, Eddie ganha uns trocados como lavador de pratos em uma das boates mais disputadas de Los Angeles, a Boogie Nights do título. Ele acredita que cada um é abençoado com algo especial. Por isso, também acredita que seu pênis avantajado é o que pode destacá-lo da mediocridade. Então, oferece-o como fonte de renda extra. O valor cobrado varia de acordo com o pedido do cliente (podem vê-lo masturbar-se ou praticando felação).

Mark Wahlberg, interpretando Eddie Adams, numa cena de Boogie Nights.
Tão logo Jack Horner (Burt Reynolds), um diretor de fitas pornográficas que sonha em realizar um filme respeitável perante os detratores do gênero, conhece o rapaz, não tem dúvidas: decide que ele será um astro do Pornô. Eis aí o passaporte do protagonista para uma existência de embalos e boêmia, que os anos 1970 pareciam ter estabelecido, quando ele é acolhido pela equipe inseparável de seu mentor (na realidade, as pessoas dessa equipe são uma espécie de família, que, no horário comercial, tem de transar para as câmeras). E Eddie, que recebe o nome artístico de Dirk Diggler, torna-se efetivamente um astro dos filmes pornográficos, sendo recepcionado com todos os mimos, que incluem entrada garantida na discoteca Studio 54 (fundada em 1977 por Ian Schrager e Steve Rubell, era uma das mais famosas casas noturnas da cidade de Nova York e uma meca para as celebridades da cultura e das artes na era Disco. Segundo a Encyclopaedia Britannica, “histórias de hedonismo e excesso no auge da Studio 54 são legião. E, em sua breve existência (1977-1986), a Studio 54 definiu uma era de glamour, libertinagem, dança de boate e festa pesada, com uma lista de convidados que incluía algumas das pessoas mais famosas do mundo na época”.), prêmios da categoria, dinheiro e um portentoso conversível.

A atriz e cantora Liza Minelli, a ativista social Bianca Jagger (nascida Bianca Pérez-Mora Macías), o artista visual e cineasta Andy Warhol (Andrew Warhola Jr., 1928-1987) e o estilista Roy Haslton Frowick (1932-1990), em foto tirada numa das festas da lendária Studio 54.
Talvez o mais notável na direção de Anderson seja que ela jamais parece ter vontade de brilhar ou nos fazer engolir o quanto podemos ser criaturas orgulhosas de nossas parcas noções acerca de outras alternativas de existência.
O diretor contempla o ano de 1977, no qual a história do filme se inicia, com todos os símbolos que o caracterizaram. E, até pouco mais da primeira metade da fita, o registro é efusivo, colorido, bem ao espírito de seus personagens. Porém, quando 1980 avança, fica claro que estamos diante de um filme sério, escancarando, com intensidade magistral, que, se havia um clima coletivo de plenitude na década que se despedia, é porque o preço exigido todos pagaram, mas inconscientes do quão exorbitante ele poderia ser: a adesão incondicional à ilusão. Sexo pode ser incessante; o dinheiro, constante; e as drogas, a garantia de um êxtase único. Porém, quando a humanidade intervém e uma determinada época já não acompanha mais suas aspirações e postura, a maturidade sacrificada torna-se um calvário. Levando em consideração o quão soturna a narrativa se converte durante a passagem das décadas, a conclusão não poderia ser diferente. Após desligar-se da trupe que lhe trouxe fama, Eddie é rapidamente rendido pela cocaína, transforma-se num michê barato e ensaia golpes pouco inteligentes, em companhia de colegas decadentes como ele.
Mark Wahlberg, saído de uma carreira desacreditada de rapper e modelo, registrou aqui um talento visceral, tanto nos momentos em que seu personagem demonstra ser um garoto chorão quanto naqueles em que é obrigado a reconhecer que está no fundo do poço. Mas tal momento de brilho ele só viria a reprisar no singular Huckabees – A Vida É uma Comédia (I Love Huckabees, 2004), já que sempre marcou presença em filmes comerciais que só acabaram por expor suas limitações.
E o que dizer de Burt Reynolds?
Devido à sua atuação em Boogie Nights, ele acenou uma espécie de retorno ao estrelato, após anos de uma decadência que teve seu ápice ao representar o político besuntado de vaselina em Striptease (idem, 1996), estrelado por Demi Moore. Foi indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Perdeu para Robin Williams. Prosseguiu no ostracismo. Faleceu em 2018, aos oitenta e dois anos de idade, devendo a Paul Thomas Anderson, seu momento máximo como ator.

Burt Reynolds, em Boogie Nights.
Cada passagem de Boogie Nights parece ter sido urdida para submeter olhos exigentes de depuração cinematográfica. Anderson realiza, com a sabedoria de um veterano, cenas que saltam do carinhoso para o tenso. Suas incursões posteriores como cineasta não desmentem a tese: Magnólia (Magnolia, 1999) é um compêndio de passagens arrebatadoras, em que uma câmera inquieta procura buscar o âmago dos personagens, a ponto de exaurir o espectador com tanta maestria; e Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007), é talvez o filme que, na primeira década do século 21, melhor ofereceu uma coleção de planos rebuscados e antológicos para desenhar um tratado sobre a ambição desmedida. Aquela câmera apressada durante a explosão de uma refinaria é um momento de grandeza imbatível; e olha que o foco é sobre Daniel Day-Lewis, certamente um dos maiores atores vivos.

E também merece ser aplaudido o quanto o roteiro e a direção de Anderson desenvolvem os personagens de forma tão completa, verdadeira e apaixonante. O cineasta elege protagonistas. Porém, não reduz a importância dos personagens com menor tempo em cena. A saga de Eddie Adams/Dirk Diggler é tão envolvente quanto os desdobramentos envolvendo Buck Swope (Don Cheadle), um ator pornô em busca do sonho de ter uma loja de aparelhos de som; e Amber Waves (Julianne Moore, magnífica), atriz que serve de figura maternal aos tipos do filme e que parece inconsciente do preço cobrado pela vida que escolheu.

Em Boogie Nights, Julianne Moore interpretou Amber Waves, uma atriz pornô que tenta conseguir na Justiça a guarda do filho.

Só falta falar da loirinha Heather Graham, que, no filme, representou uma atriz que jamais retira seus patins. Alguém é capaz de lembrar rapidamente outro momento substancial da moça no Cinema?

Heather Graham, como Brandy, a garota dos patins, em Boogie Nights.
Retornando à discussão a respeito da relevância de um filme, mesmo quando lançado numa época de sucessos milionários e outras nulidades indicadas ao Oscar, Boogie Nights hoje se impõe como o filme máximo do ano em que estreou.

Paul Thomas Anderson, em foto tirada na época em que realizou Boogie Nights.
Não se pode prever que Paul Thomas Anderson, que, vez ou outra, assina como P. T. Anderson e entregou uma besteira do quilate de Embriagado de Amor (Punch-Drunk Love, 2002), permaneça em pleno ofício de sua arte. Mas uma fita como Boogie Nights é um atestado de relevância eterna. Ele nos legou aqui um filme inspirador em sua energia, confiando na disposição de seu público para com obras vastas e meticulosas, sob um verniz dos mais interessantes.
Finalizando: com Boogie Nights, Anderson comprova que, mesmo sendo difícil enxergar um futuro feliz para tipos como os desajustados personagens do filme, tropeços podem, não nos reabilitar, mas, pelo menos, conseguem render registros interessantes e catárticos.

Ilustração feita para um cartaz de Boogie Nights.
Boogie Nights – Prazer Sem Limites (Boogie Nights, Estados Unidos, 1997, 156’)
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson
Fotografia: Robert Elswit
Montagem: Dylan Tichnor
Elenco: Mark Wahlberg (Eddie Adams/Dirk Diggler), Burt Reynolds (Jack Horner), Julianne Moore (Amber Waves/Maggie), Don Cheadle (Buck Swope), John C. Reilly (Reed Rothchild), William H. Macy (Little Bill), Heather Graham (Roller Girl/Brandy), Nina Hartley (esposa de Little Bill), Luis Guzmán (Maurice T. Rodriguez), Philip Seymour Hoffman (Scotty J.), Philip Baker Hall (Floyd Gondolli),Thomas Jane (Todd Parker), Alfred Molina (Rahad Jackson), Joanna Gleason, Lawrence Hudd
Curiosidade: a juíza que julga o caso de Amber Waves foi interpretada por uma das estrelas dos filmes pornográficos norte-americanos das décadas de 1970 e 1980: Veronica Hart (pseudônimo de Jane Esther Hamilton), que trabalhou em alguns clássicos do gênero, entre os quais Woman in Love – A Story of Madame Bovary (1978), Amanda by Night (1981), Pandora’s Mirror (1981) e Roommates (1982).
João Rodolfo Franzoni é jornalista e professor.