A SUBSTÂNCIA – POLÊMICO, CHOCANTE E VISCERAL, UMA REDENÇÃO DE DEMI MOORE
Por Bruno Ricardo de Souza Dias
O tradicional Festival de Cannes sempre nos traz obras diferenciadas – diferenciadas
por suas temáticas ousadas ou por causarem choques que acabam levando a muitas
polêmicas. No ano de 2024, o filme que serviu a esse importante papel foi o longa-
metragem A Substância, escrito e dirigido pela francesa Coralie Fargeat.
A fita é uma ficção científica de horror que dividiu a crítica especializada, apesar de
ter sido longamente aplaudida ao término de sua exibição.
No festival, conseguiu o importante prêmio de Melhor Roteiro. Mas o que mais
causou comoção foi sua estética explícita e brutal, em que a protagonista, a atriz Demi
Moore, musa de Hollywood dos anos 1980 e 1990, mostra um lado corajoso que
surpreendeu a todos. No longa, Demi se expôs de tal maneira, que certamente causará
sentimentos opostos sobre sua atuação.
Durante uma entrevista, a atriz, que completou sessenta e dois anos de idade em
novembro de 2024, contou o que a atraiu no roteiro de A Substância: “Era
completamente único, fora do comum. Você percebia que era visualmente estimulante.
Ao mesmo tempo, não tínhamos ideia de como terminaria, o que o tornava ainda mais
arriscado e saboroso.” Em seguida, acrescentou: “Parte do que o tornou interessante
foi ir a um lugar tão cru e vulnerável, para realmente me desprender. O filme foi
bastante libertador em muitos aspectos.”
Para Nicholas Barber, crítico de Cinema da BBC, Demi Moore interpreta, em A
Substância, “seu melhor papel na tela grande em décadas”.
De acordo com Corlalie Fargeat, a escolha do elenco foi um “grande desafio”.
Desde o início, ela sabia que, com o tipo de história narrada em A Substância, escolher
uma atriz para interpretar sobretudo a personagem principal seria extremamente difícil.
“E, no momento que me veio à mente o nome de Demi Moore, eu tinha certeza de
que ela não gostaria de trabalhar no filme. Acharia seu papel muito assustador.
Quando ouvi que ela reagira positivamente ao roteiro, pensei: ‘Meu Deus!’ Fiquei
muito surpresa”, revelou a diretora.
“Eu me senti muito bem, por poder parecer e aparecer um lixo!”, afirmou Demi.
Um dos cartazes originais do filme A Substância.
Demi Moore, numa cena de A Substância.
Claramente uma obra moderna e feminista, A Substância vem causando análises bem
distintas do público, desde que estreou nos cinemas comerciais e no streaming. Mas será
que toda essa polêmica se faz justa?
Tendo a ousadia de ultrapassar diversos limites visuais e temáticos, o filme se utiliza
de imagens absolutamente impactantes e viscerais, não tendo medo de chocar ou gerar
algum tipo de polêmica com os excessos de violência, o uso de muito sangue ou a nudez
explícita, fazendo um tipo de body horror (horror corporal), muito comum em filmes
do cineasta canadense David Cronenberg, como os clássicos Videodrome: A Síndrome
do Vídeo (Videodrome, 1983) e A Mosca (The Fly, 1986), ou até mesmo o recente
Crimes do Futuro (Crimes of the Future, 2022).
Na foto acima, Jeff Goldblum, numa cena de A Mosca.
Em A Substância, Cronenberg certamente é uma referência clara para Fargeat: assim
como ele, ela faz a opção por efeitos práticos em suas cenas, com vários protótipos e
maquiagens que dão um efeito que, com muita facilidade, vai do espanto visual ao nojo.
Tudo com a finalidade de levar o espectador ao choque e tirá-lo da sua zona de conforto,
o que é um artifício que funcionou perfeitamente, considerando as situações vividas
pelas personagens.
Sendo o filme uma obra feminista de teor crítico, toda essa questão visual absurda é
complementada com as discussões sobre o sofrimento feminino em relação à fama, já
que a personagem principal, Elisabeth Sparkle (Demi Moore), chegou ao auge da
carreira e perdeu tudo de uma maneira abrupta, graças ao etarismo de Hollywood e da
televisão americana. Etarismo esse que só atinge as mulheres, pois o Cinema e a TV são
meios predadores, que, em busca de audiência, só se importam com a necessidade da
beleza feminina. Então, ao envelhecerem, as mulheres são descartadas, fato que não
ocorre com os homens, que, além de serem, de uma maneira geral, aqueles que
historicamente detêm os cargos de comando, ao ficarem mais velhos são vistos apenas
como mais experientes, não perdendo em nada seus privilégios, muito pelo contrário.
É importante falarmos sobre como a sociedade machista influencia nesse contexto de
tratar as mulheres como meros objetos do seu bel-prazer. Com seus julgamentos
desumanos, o machismo é tóxico e acaba refletindo em todas as esferas e na maioria das
pessoas, inclusive nas próprias mulheres. No filme, fica claro o foco do machismo nos
homens. Todos os personagens masculinos são retratados como figuras nojentas,
monstruosas e interesseiras; e são mostrados de forma propositalmente caricata. Um
ponto capaz de gerar críticas à diretora: o abuso das cenas de nudez das mulheres.
Podem, devido a essas cenas, considerar Fargeat uma machista. Particularmente, não
concordo com tal opinião, pois a cineasta procurou criticar justamente o machismo.
Não podemos finalizar, sem falar das atuações.
Coralie Fargeat, ladeada por Margaret Qualley e Demi Moore.
Foto tirada durante o 49th Toronto International Film Festival, realizado em Toronto,
no Canadá, entre 5 e 15 de setembro de 2024.
A jovem Margaret Qualley já se mostra com um futuro promissor. Filha da também
atriz Andie MacDowell, famosa pela atuação no clássico Feitiço do Tempo (Groundhog
Day, 1993), ela já fez participações esporádicas em filmes de diretores renomados como
Quentin Tarantino e Yorgos Lanthimos, mostrando-se, desde cedo, com vontade de se
destacar em obras e trabalhos desafiadores. Ficaremos de olho nela.
Mas o destaque absoluto fica por conta de Demi Moore, que teve seu apogeu nos
anos 1980 e 1990, como uma das divas de Hollywood. E, após tentar se desvencilhar de
papéis glamorosos, ao atuar em trabalhos mais desafiadores, ela sofreu um boicote dos
produtores, que não aceitavam que uma mulher formosa fosse representar outros
personagens. Desse modo, Demi foi tirada de circulação dos grandes filmes e ficou
muito tempo esquecida das superproduções.
Agora, em A Substância, Demi tem sua redenção, atuando numa fita em que, além de
se mostrar completamente ousada e corajosa, ela pôde demonstrar todo o seu talento,
algo que lhe foi negado durante muito tempo.
A Substância é uma obra-prima moderna que talvez não seja para todos os públicos.
Porém, acima de tudo, é a consagração de Demi Moore. Ela merece esse
reconhecimento de todos nós, que, influenciados pelos abutres de Hollywood, a
desprezamos por muitos anos.
A Substância (The Substance, França/Reino Unido/Estados Unidos, 141’)
Direção: Coralie Fargeat
Roteiro: Coralie Fargeat
Produção: Coralie Fargeat, Eric Fellner & Tim Bevan
Fotografia: Benjain Kracun
Montagem: Coralie Fargeat, Jérôme Eltabet & Valentin Feron
Maquiagem Protética: Pierre-Olivier Persin
Elenco: Demi Moore (Elisabeth Sparkle), Margaret Qualley (Sue), Dennis Quaid
(Harvey), Edward Hamilton Clark (Fred), Gore Abrams (Oliver), Oscar Lesage (Troy),
Robin Greer (enfermeiro), Tom Morton (médico), Hugo Diego Garcia (namorado),
Christian Erickson, Daniel Knight, Jiselle Henderkott, Akil Wingate
Sinopse: Elisabeth Sparkle, renomada por um programa de tevê de aeróbica,
enfrenta um golpe devastador, quando seu chefe a demite. Em meio ao seu desespero,
um laboratório lhe oferece uma substância que promete transformá-la em uma versão
aprimorada.
“A Substância é um tapa na cara.”
Margaret Qualley
“Sem dúvida, a melhor performance da carreira de Demi Moore.”
Vogue
“Extremamente envolvente e delirantemente ambicioso.”
Variety
“Fargeat leva o horror corporal ao limite, desafiando o espectador a continuar
olhando, em vez de se esconder, lamentar-se ou até mesmo vomitar – todas as reações
são inteiramente possíveis.”
Anna Smith, no número de agosto de 2024 da edição britânica da revista Rolling
Stone
Bruno Ricardo de Souza Dias é licenciado em História e um grande conhecedor de filmes.
Queremos agradecer ao professor, ilustrador e cinéfilo Cayman Moreyra pela ilustração feita em homenagem à fita A Substância.