QUANDO DESCERAM AS TREVAS

R. F. Lucchetti
Edição: Marco Aurélio Lucchetti
Em 1920, o lunático dr. Caligari utiliza o sonâmbulo Cesare para difundir a morte e o pavor nas cidades da Alemanha.

Dr. Caligari (Werner Krauss) e Cesare (Conrad Veidt), numa cena de uma das grandes obras do Expressionismo Alemão, O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari), escrito por Carl Mayer (1894-1944) & Hans Janowiz (1890-1954) e dirigido por Robert Wiene (1873-1938).
Cesare tem a fisionomia branca de um cadáver, veste-se todo de preto e insinua-se de modo sorrateiro por ruas estreitas e povoadas de casas de paredes e muros deformados.
Produto da mente de um louco que cria um mundo fantástico, Cesare foi a primeira criatura a entenebrecer verdadeiramente as telas, aterrorizando os espectadores aconchegados nas salas escuras dos cinemas.
Dois anos depois do aparecimento de Cesare, surge o Conde Orlok, a primeira encarnação do Conde Drácula (criado pelo escritor irlandês Bram Stoker) no Cinema.
Enquanto a luz do dia brilha no firmamento, o Conde Orlok repousa em seu ataúde. Mas, tão logo as trevas encobrem o mundo, ele ergue-se do seu esquife e lança-se à sua obra de destruição, espalhando a maldade pela noite e chupando o sangue de lindas e incautas donzelas.

O Conde Orlok (Max Schreck), despertando de seu sono, em Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror (Nosferatu, Eine des Grauens), de F. W. Murnau (1888-1931).
Morto há trezentos ou quatrocentos anos, esse ser que habita um sinistro castelo adquiriu, ao longo dos séculos, uma vasta sabedoria. Somente a aurora ou uma estaca cravada em seu coração pode destruí-lo.

O Conde Orlok, sendo destruído pela luz da aurora, no final de Nosferatu.
O Conde Drácula, que fez sua primeira aparição nos cinemas dos Estados Unidos em 1931, tem o mesmo saber do Conde Orlok. E, na mitologia cinematográfica do Horror, ambos se confundem numa única e tenebrosa figura.
As vítimas preferidas de Drácula também são lindas e indefesas mulheres.

O Conde Drácula (Bela Lugosi), prestes a sugar o sangue de uma bela adormecida (interpretada por Helen Chandler), no clássico Drácula (Dracula, 1931), dirigido por Tod Browning (1880-1962).
Incontáveis vampiros e vampiresas, muitos deles sem a intelectualidade e a nobreza dos condes Drácula e Orlok, surgiram e foram destruídos, expostos que foram à luz do alvorecer, trespassados que foram por uma estaca…

Ingrid Pitt (nascida Ingoushka Petrov, 1930-2010), representando a vampira Carmilla [personagem criada pelo irlandês Joseph Sheridan Le Fanu (1814 -1873), autor de contos góticos e novelas de Mistério], em Os Vampiros Amantes (The Vampire Lovers, 1970), filme produzido pela Hammer e dirigido por Roy Ward Baker (1916-2010).
Numa crítica publicada em 23 de maio de 1973 no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, Valério Andrade disse o seguinte a respeito de Os Vampiros Amantes:
“A narrativa é conduzida por Roy Ward Baker com dignidade e permanente bom gosto estético.
Resistindo aos apelos e aos riscos do roteiro, Baker jamais permite que a grossura se faça presente, mantendo a fita num nível erótico elevado, dando, também, um novo fascínio à tradicional fórmula do filme de Horror.
Do ponto de vista técnico, Os Vampiros Amantes revela o habitual acabamento das melhores produções da Hammer, em que se destacam uma cenografia fotogênica e uma partitura musical em que os gritos funcionam como elemento dramático.
Para os admiradores do gênero, Os Vampiros Amantes é um programa obrigatório.”
Ainda hoje, Drácula e seus congêneres continuam a infestar os cinemas, apavorando e seduzindo os espectadores.
Na Alemanha, berço das superstições que possibilitaram a criação de uma dezena das mais terríveis criaturas, o dr. Henry Frankenstein planejou e executou a construção de um monstro formado com o cérebro de um anormal e pedaços de diversos cadáveres.
Enorme, de fisionomia horrível e andar claudicante, o monstro criado pelo dr. Frankenstein mata pessoas como a foice ceifa plantas. Muito lúgubre, ele percorre as imediações do castelo de seu criador; e sua falta de piedade é total. Porém, às vezes, tem atitudes desconcertantes e pode ser visto, por exemplo, à beira de um lago, brincando com uma adorável garotinha loura.

Idealizado – nas sombras de porões úmidos – pela mente insana de um cientista que queria brincar de ser Deus, esse monstro assombrou, ou melhor, ainda assombra o mundo com sua maldade. E, desde 1931, quando apareceu em sua versão mais famosa nas telas, foi inúmeras vezes abatido e inúmeras vezes retornou à vida, já que é formado por um grande número de cadáveres.

Boris Karloff (nome artístico de William Henry Pratt, 1887-1969), caracterizado como o Monstro de Frankenstein, em Frankenstein (idem, 1931), fita dirigida por James Whale (1889-1957) e baseada no romance Frankenstein ou O Moderno Prometeu (Frankenstein or The Modern Prometeus, 1818), de autoria da inglesa Mary Shelley (Mary Wollstonecraft Shelley, 1797-1851).

A partir de 1932, nas areias escaldantes e milenares do Egito, múmias começam a voltar à vida, para vingar a violação de seus túmulos eternos e sair em busca das mulheres que amaram há mais de trinta séculos.

E tudo começou com o filme A Múmia (The Mummy).

Cartaz original (estadunidense) de A Múmia, o primeiro filme de uma longa série de fitas de múmia.
No seu excelente livro The Dracula Book (1975), o escritor e roteirista de histórias em quadrinhos Donald F. Glut (cheguei a corresponder-me com ele durante um período da década de 1970) assim se referiu ao filme A Múmia:
“Em certo grau, A Múmia, dirigido por Karl Freund e apresentando Boris Karloff no principal papel, foi uma ‘refilmagem’ de Drácula (Freund, casualmente, foi o diretor de fotografia de Drácula). Karloff representou Im-Ho-Tep, um egípcio mumificado e redivivo no século 20.
Disfarçando-se de Ardath Bey, a múmia viva procura recuperar sua amada, a princesa Anck-es-en-Amon, reencarnada em Helen Grosvenor (interpretada por Zita Johann).
Edward Van Sloan interpretou uma espécie de dr. Van Helsing (o célebre caçador de vampiros), o dr. Muller, um arqueólogo com conhecimento do sobrenatural e um desejo ardente de destruir Ardath Bey antes que este possa transformar a princesa reencarnada em uma criatura igual a ele. A batalha de inteligências travada entre Ardath Bey e seu oponente é similar àquela entabulada entre o Conde Drácula e Van Helsing (por coincidência, no filme Drácula, de Tod Browing, o dr. Van Helsing foi interpretado por Edward Van Sloan).”

Edward Van Sloan e Boris Karloff, numa cena de A Múmia.
Nas noites de lua cheia, em vários países (sobretudo na Europa Central), quando soam as doze batidas da meia-noite, um uivo sinistro pode ser ouvido. Então, os ciganos calam suas vozes, silenciam suas guitarras e recolhem-se temerosos às suas tendas, porque têm consciência de que esse uivo indica que o horripilante lobisomem, um ser de dentes aguçados e rosto e corpo peludos, está pronto para atacar os viandantes noturnos.

Na manhã seguinte, o lobisomem transforma-se novamente num homem comum e, compreendendo o mal que praticou durante a noite, fica angustiado. E sua angústia aumenta, ao lembrar que somente encontrará a paz na morte, que tem de ser por uma bala de prata.
A linhagem do lobisomem é extensa. Entretanto, nenhum foi mais terrível e mais torturado do que um dos primeiros lobisomens das telas cinematográficas: Larry Talbot, aparecido em 1941.

Transformado em homem-lobo, Larry Talbot (Lon Chaney Jr.) está à espreita, numa cena de O Lobisomem (The Wolf Man), de George Waggner (1894-1984).
Em Londres, o bondoso dr. Jekyll faz surgir um monstro de perversidade e fúria, o asqueroso sr. Hyde, que, na realidade, é um desdobramento da sua própria personalidade.

Cartaz original (estadunidense) de O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1941), uma das inúmeras adaptações cinematográficas da célebre novela escrita por Robert Louis Stevenson (1850-1894).
Também em Londres, um assassino cruel, o famigerado Jack o Estripador (Jack the Ripper, em Inglês), dissemina o pânico entre as prostitutas do miserável distrito de Whitechapel.

Um dos filmes mais memoráveis tendo como tema Jack o Estripador é Ódio Que Mata (The Lodger, 1944), baseado num romance escrito por Marie Belloc Lowndes (1868-1947).
Esse romance foi publicado primeiramente em capítulos, em 1913, no jornal londrino The Daily Telegraph. Depois, no mesmo ano, apareceu em livro, lançado pela Methuen Publishing Ltd.

Cartazete original (estadunidense) de Ódio Que Mata.
Abre um parêntese.
Um ano após o lançamento de Ódio Que Mata, chegava aos cinemas dos Estados Unidos um clássico do Horror e do Suspense: Concerto Macabro (Hangover Square, 1945), cuja história gira em torno de um renomado compositor erudito (Laird Cregar) que tem sua carreira destruída por sucessivos lapsos de memória e por se apaixonar por uma ambiciosa e interesseira cantora de cabaré (Linda Darnell).
Concerto Macabro foi dirigido pelo mesmo diretor de Ódio Que Mata: John Brahm (nascido Hans Brahm, 1893-1982).
Fecha o parêntese.
Nos porões inundados do teatro da Ópera de Paris, vive um homem de rosto desfigurado, que ama uma jovem cantora e deseja transformá-la na estrela da companhia da Ópera. Para atingir seu objetivo, ele não hesita em matar todos aqueles que cruzam seu caminho.
Ainda em Paris, um orangotango comete uma série de assassinatos na Rua Morgue.
Enquanto isso, em cemitérios abandonados, mortos se erguem de seus túmulos e põem-se a caminhar na escuridão da noite, impulsionados por estranhas forças da Natureza. São os zumbis, os mortos-vivos, que empesteiam a noite com seu cheiro do Além. Silenciosos e de olhos esbugalhados, eles atacam, destroem e matam.

Em ilhas misteriosas e perdidas nos mares, sons de tambores de Vodu e lamentos agônicos enchem de horror a solidão da noite; plantas carnívoras devoram sofregamente suas vítimas; uma equipe de filmagem trava contato com um gigantesco gorila que se apaixonará por uma bela atriz e espalhará o terror entre a população de Nova York.
Em locais inóspitos, médicos dominados pela loucura realizam estranhas experiências, transformando pessoas normais em seres pequeninos ou em seres meio humanos e meio animais; um grupo de cientistas encontra uma singular espécie de criaturas anfíbias...
Assim, vemos que há dez decênios o mundo do horror começou a invadir o Cinema. Foi uma invasão disfarçada, iniciada com o sonâmbulo Cesare e, aos poucos, intensificada com o surgimento das mais bizarras e tenebrosas criaturas.
R. F. Lucchetti (Rubens Francisco Lucchetti, 1930-2024) foi ficcionista e roteirista de Cinema & Quadrinhos.