ALICE OU A ÚLTIMA FUGA

Marco Aurélio Lucchetti
Edição: Marco Aurélio Lucchetti
Sylvia Maria Kristel, ou simplesmente Sylvia Kristel, nasceu em 28 de setembro de 1952, na quarta cidade mais populosa da Holanda, Utrecht, conhecida por possuir uma das mais antigas universidades holandesas.

Sylvia Kristel.
Ainda que fosse holandesa, Sylvia Kristel tornou-se um símbolo francês, como atesta o parágrafo de introdução de uma entrevista dada por ela para o número 11 (datado de abril de 1977) de Cinema Français (revista editada pela Unifrance Film, entidade criada para promover o cinema francês fora da França):
“Apesar de ter nascido em Utrecht, Sylvia Kristel tornou-se, com nove filmes e sobretudo com Emmanuelle, um puro produto parisiense para a exportação. Para cem milhões de espectadores que assistiram nos cinco continentes às aventuras da heroína imaginada por madame Arsan, Sylvia Kristel se tornou tão célebre quanto o Folies Bergère ou a Torre Eiffel.”

A fachada, em estilo Art Déco, do Folies Bergère, que teve o auge de sua fama e popularidade como cabaré entre a década de 1890 e os anos 1920.
Na tal entrevista, a srta. Kristel contou o seguinte a respeito de sua adolescência e o início de sua carreira de atriz:
“Meus pais eram proprietários de um hotel que ficava em frente à estação de trens de Utrecht. Tenho uma irmã mais nova. Ela se chama Marianne. Mal completei doze anos de idade, colocaram-me num colégio de freiras. Fiquei lá, durante quatro anos. Educação rigorosa. Eu queria fugir. Terminei os estudos e, como não tinha nada para fazer, decidi entrar no Normal e conseguir uma licenciatura em Inglês. Porém, da mesma forma que a precedente, essa escola não era nem um pouco prazerosa. Seus diretores, todos calvinistas, certamente nunca ouviram falar da palavra alegria. Creio que não riam, nem mesmo quando lhes coçavam os pés. Saí correndo de lá e fui viver minha vida sozinha, por conta própria. Fui garçonete, secretária… Conseguia empregos facilmente. Trabalhei também como enfermeira, vendedora, demonstradora, recepcionista e até como atendente num posto de gasolina em Amsterdã, capital da Holanda. Um dia, aconselharam-me a fazer fotos de Moda. Segui o conselho, e foi um sucesso imediato. Eu tinha vinte anos. Então, logo participei do Miss TV Europe, um concurso para encontrar uma apresentadora que, falando vários idiomas, pudesse animar os programas internacionais do tipo Eurovision. Ganhei o concurso, um Mercedes, uma viagem à Jamaica e mil libras holandesas. Aí, ofereceram-me um papel no filme Because of the Cats. O roteirista chamava-se Hugo Clauss. Apaixonei-me imediatamente por ele. A essa fita seguiram-se outras duas. Produções holandesas. Numa delas, uma comédia musical intitulada Naakt Over de Schutting, eu canto, danço e represento. Depois, graças ao ator Jacques Charrier, Just Jaeckin viu uma foto minha. E voilà.”

Sylvia Kristel, numa foto tirada em 1973.

Sylvia Kristel, numa cena de Emmanuelle.
Em 1974, Sylvie Kristel estrelou Emmanuelle/Emmanuelle, A Verdadeira (Emmanuelle), um filme erótico francês dirigido por Just Jaeckin (1940-2022) e baseado num romance da escritora Emmanuelle Arsan (pseudônimo de Marayat Rollet-Andriane, nascida Marayat Bibidh, 1932-2005).
Narrando as peripécias sexuais da esposa de um diplomata francês na Tailândia, o romance de Emmanuelle Arsan foi publicado por Éric Losfeld (1922-1979), numa edição clandestina lançada em 1959. Em 1967, o livro foi relançado pela Le Terrain Vague, editora pertencente a Losfeld e especializada em publicar material cult e/ou controvertido.

Capa de uma edição em Inglês do romance Emmanuelle.
Emmanuelle, que está eternamente em busca de novas experiências sexuais e emoções, marcaria para sempre a carreira de Sylvia Kristel. Ela interpretaria a personagem em cerca de uma dezena de fitas, algumas das quais produzidas para a televisão a cabo.

Sylvia Kristel, interpretando Emmanuelle.
E, com relação a Emmanuelle, a srta. Kristel, na entrevista já mencionada, afirmou:
“O filme de Just Jaeckin nos mostra como Emmanuelle passava de uma certa inocência ao universo do prazer. Ela adentra nesse universo pelas mãos de um italiano, Mario, interpretado por Alain Cuny. É Mario que educa os sentidos de Emmanuelle e a faz descobrir que, ao lado do amor propriamente dito, existem estranhos deleites que não têm nada a ver com o ponto de vista puramente afetivo. Bem, Emmanuelle me é simpática na medida em que ela é verdadeira. Sendo interessada pelo universo sexual, entrega-se com sinceridade. Mas, pessoalmente, a personagem não me afeta. Eu só me pareço com ela, se assim quiser, pelo fato de que eu a sinto. E, para isso, não preciso me identificar com ela na vida real. Se o artista tivesse que se identificar com seu personagem, precisaríamos pedir, por exemplo, a Greta Garbo para ser Marguerite Gautier, a Dama das Camélias; a Marlene Dietrich, a Imperatriz Vermelha; e a Leonardo da Vinci para se parecer com a Mona Lisa. Entretanto, há muitas pessoas que consideram ator e personagem uma coisa só. Para essas pessoas, Peter Falk não é o grande ator que é. Para elas, ele é simplesmente o tenente Columbo, da Homicídios.”

Peter Falk (1927-2011), representando o tenente Columbo, personagem criado por William Link (1933-2020) & Richard Levinson (1934-1987).
Em sua carreira cinematográfica, Sylvia Kristel logicamente não interpretou somente Emmanuelle. Representou outros personagens. Um dos mais marcantes é Alice Carroll, a figura principal de Alice ou A Última Fuga (Alice ou la dernière fugue, 1977), dirigido por um dos mestres da Nouvelle Vague, Claude Chabrol (1930-2010).

Cartaz original (francês) de Alice ou A Última Fuga.
Para realizar o filme, Chabrol buscou inspiração em Aventuras de Alice no País das Maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland, 1865) e Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá (Through the Looking-Glass and What Alice Found There, 1871), do escritor inglês Lewis Carroll (1832-1898), e inseriu sua heroína numa realidade paralela.

Sylvia Kristel, numa cena de Alice ou A Última Fuga.
Cansada de conviver com um marido egoísta, Alice, uma jovem e bela esposa burguesa, decide romper os laços que a trazem aprisionada à posição de mulher-objeto. Numa noite de tempestade, ela entra em seu carro e parte em disparada e sem destino através de uma estrada qualquer.
Curiosamente, a fuga de Alice, que deixa para trás sua confortável – mas entediante – vida, trouxe-me à memória a fuga de Marion Crane (Janet Leigh) em Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock (1899-1980).

Janet Leigh (1927-2004), numa cena de Psicose.
A entrada de Alice no universo paralelo e surreal criado por Chabrol se inicia quando, repentinamente, o para-brisa de seu automóvel se estilhaça (em Através do Espelho, o espelho da sala da casa onde mora a menina Alice fica “todo macio, como gaze”, e começa “a se desfazer lentamente, como se fosse uma névoa prateada e luminosa”, permitindo a passagem da garota para o outro lado).

O espelho começa a se desfazer, permitindo a passagem da menina para o outro lado.
Ilustração feita por John Tenniel (1820-1914) para o livro Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá.
A partir daí, ocorre uma sucessão de fatos inusitados, que vão deixando Alice Carroll e nós, espectadores, cada vez mais surpresos, para dizer o mínimo. Entretanto, o cineasta não se utiliza de nenhum dos artifícios habituais que o Cinema costuma usar para suscitar a angústia, o medo e o suspense. Não se ouvem gritos de terror ou lamentos agônicos. Não há portas que rangem. Não existem fantasmas, lobisomens, múmias, vampiros, mulheres que se transformam em panteras etc. Nem densos nevoeiros. Nem surgem do nada monstros terríveis ou assassinos psicopatas e cruéis.
Não tendo condições de enxergar direito, devido à chuva que continua caindo de forma torrencial, Alice ainda consegue dirigir mais um pouco, até que surge à sua frente a “fenda aberta no grande parque” [como em Aventuras de Alice no País das Maravilhas, quando, “ardendo de curiosidade”, a garotinha Alice persegue, através da campina, um Coelho Branco (possuindo olhos cor-de-rosa, ele passara correndo por ela e falara, após tirar um relógio do bolso do colete e consultar as horas: “Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais!”) e se enfia numa “toca atrás dele, sem pensar de que jeito conseguirá sair depois”]: um casarão aristocrático, isolado e cercado de árvores frondosas e um imenso e bem-cuidado jardim.
Nesse casarão, Alice é recebida calorosamente pelo dono da propriedade (parece até que ele já estava à sua espera), Henri Vergennes (interpretado pelo veterano Charles Vanel), um amável ancião, e seu fiel criado, Colas. Henri a coloca à vontade, oferece-lhe sua hospitalidade e pede-lhe que ceie, durma e espere que passe a tempestade. “Amanhã”, diz ele, “o para-brisa estará consertado. Aí, você poderá seguir viagem.”

No dia seguinte, Alice percebe que está absolutamente sozinha no imenso casarão. Henri e seu criado desapareceram. Depois, apesar de todas as tentativas para deixar o local, Alice não consegue partir e retomar seu caminho. Não há mais saídas – o parque está fechado por um muro circular.

Como um ratinho de laboratório e, às vezes, parecendo uma sonâmbula, Alice vagueia por toda a propriedade, em busca de um modo de sair daquela espécie de labirinto. Porém, num típico jogo de gato e rato, ela, a todo momento, esbarra nas paredes daquele espaço inusitado e perturbador.


Em certo instante de sua deambulação, que acontece sempre à luz do dia, Alice se desnuda. Por completo. Seu esbelto corpo de curvas perfeitas surge esplendoroso à nossa frente, como se fosse uma pintura Renascentista ou Pré-Rafaelita. No entanto, em nenhum momento desta sequência, nos recordamos de que aquele corpo de rosto bonito e expressivo, seios em forma de pera e longas pernas pertence à atriz Sylvia Kristel. Nem nos lembramos da personagem Emmanuelle e suas estripulias sexuais. Enfim, Chabrol não usou a nudez da sua heroína como um apelo erótico/sexual. Usou-o, sim, para demonstrar toda a fragilidade de Alice, diante de um ambiente cada vez mais ilógico e apavorante.

Alice prossegue, de surpresa em surpresa, pelo universo paralelo, até que, finalmente, os portões se abrem outra vez.
Então, estranhamente, o mundo lá fora se mostra inquietante para Alice. E ela acaba retornando ao casarão, onde o mesmo e simpático ancião da noite anterior a acolhe novamente.

Sylvia Kristel e Charles Vanel, numa cena de Alice ou A Última Fuga.
Segundo Claude Chabrol, Alice ou A Última Fuga é uma homenagem a um dos grandes mestres do Cinema Fantástico: Fritz Lang (1890-1976). “Dediquei o filme a Lang”, revelou Chabrol, “porque resolvi me tornar cineasta depois de assistir ao seu incomparável O Testamento do Dr. Mabuse, realizado na década de 1930. Para mim, Lang sempre foi e continua a ser o grande modelo em minha tentativa de alcançar o despojamento absoluto.”

Capa de um DVD brasileiro de Alice ou A Última Fuga.
O DVD foi lançado pela Lume Filmes.
Alice ou A Última Fuga (Alice ou la dernière fugue, França, 1977, 93’)
Direção: Claude Chabrol
Roteiro: Claude Chabrol
Fotografia: Jean Rabier
Montagem: Monique Fardoulis
Elenco: Sylvia Kristel (Alice Carroll), Charles Vanell (Henri Vergennes), Bernard Rousselet (o marido de Alice), Jean Carmet (Colas), André Dussollier, Fernand Ledoux, François Perrot, Thomas Chabrol, Catherine Drusy, Katia Romanoff, Jean Cherlian, Jean Le Boulbar, Cécile Maistre, Louise Rioton, Noël Simsolo

“Para André Breton e os surrealistas, a menina Alice (criada por Lewis Carroll) era uma figura de revolta, um desafio às opressões disfarçadas do cotidiano. Inicialmente, o filme de Chabrol parece fazer parte dessa tradição surrealista, apresentando Alice Carroll como uma rebelde. Suas primeiras palavras são “non, merci”, e sua primeira ação é deixar o marido. Pega em uma tempestade, enquanto dirige. Refugia-se em uma casa de campo (perto da rodovia), aparentemente povoada pelo senhor do feudo e seu criado. Presa neste “país das maravilhas”, ela responde com silêncio, recusando-se a se envolver em um discurso que a define e a delimita.

Quando assistimos pela segunda vez a Alice ou A Última Fuga, fica claro que o País das Maravilhas de Chabrol não é o local de brincadeira e experimentação de Lewis Carroll, mas um campo de testes ideológicos, um portal existencial. Aqui, Alice é uma figura liminar. Ela é vista pela primeira vez em uma porta, posicionada entre seu marido e seu ambiente doméstico e a saída pela qual ela sairá. Este é o primeiro de muitos limiares ou portais que Alice cruza, ou que bloqueiam seu progresso, ou através dos quais ela é enquadrada por outros. A própria Alice é pega naquele espaço intermediário entre a velha vida que ela está deixando e a nova que ainda está para se materializar. Grande parte do filme é filmado no crepúsculo prateado do amanhecer ou do anoitecer, e o ponto de vista do filme muda enervantemente da subjetividade de Alice para o olhar não atribuído que a sujeita.”
Darragh O’Donoghue