ASILO SINISTRO – PARTE DOIS

R. F. Lucchetti
Edição: Marco Aurélio Lucchetti

Cartazete original (estadunidense) do filme Asilo Sinistro.
Eu dou início à segunda parte do meu texto a respeito de Asilo Sinistro, dizendo que, no filme, diversas cenas impressionam.
Dentre essas cenas, destaco cinco:
1 – A de Mestre Sims mostrando para Nell o interior do St. Mary’s of Bethlehem Asylum, que mais se assemelha a uma câmara de horrores.
Acho importante informar que, inicialmente, Val Lewton deu à fita o título de Chamber of Horrors, ou seja, Câmara de Horrores. Depois, decidiu intitulá-la A Tale of Bedlam; e, por fim, Bedlam.

Mestre Sims apresenta para Nell uma das internadas no St. Mary’s.
2 – A do alienado (Glen Vernon) que, personificando a Razão, durante um espetáculo criado por Mestre Sims para divertir lord Mortimer e seus convidados (um desses convidados é Nell Bowen), termina morrendo por asfixia, uma vez que seu corpo foi todo pintado com tinta dourada.

Glen Vernon (1923-1999), pintado de dourado, em Asilo Sinistro.

No filme 007 Contra Goldfinger (Goldfinger, 1964, direção de Guy Hamilton), há uma cena mais ou menos similar: como castigo por ter se envolvido com o agente secreto James Bond (Sean Connery), Jill Masterson (Shirley Eaton), uma auxiliar do vilão Auric Goldfinger (Gert Fröbe), morre com o corpo inteiro coberto de tinta dourada.
3 – A de William Hannay visitando às escondidas o hospício, para ver Nell. Em determinado momento, no clímax da cena, os dementes tentam agarrá-lo, colocando as mãos para fora de suas celas.

4 – A dos doidos julgando Mestre Sims, que, desesperado, procura se defender, falando:
“Eu nunca pretendi magoá-los. Nunca pretendi acorrentar ninguém, torturar ninguém. Já lhes disse porque fiz isso. Porque precisava. Eu tinha medo. Tinha medo deste grande mundo, o grande mundo dos homens. Tinha medo da pouca riqueza que obtive. O que o mundo acha… eu também acho. O que eles fazem… eu também faço. O que eu sei de nada vale! Tive que aceitar, curvar-me, reduzir-me à nulidade, para evitar ter que ouvir o mundo rir-se de mim.”

5 – A de Mestre Sims sendo emparedado vivo, depois de ter sido ferido mortalmente por um dos loucos.
Ao ver essa cena, lembrei-me de imediato do final de um dos contos mais célebres de Edgar Allan Poe (1809-1849), “O Barril de Amontillado” (“The Cask of Amontillado”, publicado pela primeira vez no número de novembro de 1846 do Godey’s Lady’s Book, um magazine feminino editado na Filadélfia), em que Fortunato é emparedado vivo na adega de seu rival, Montresor.

Na expressão do rosto de Boris Karloff, nota-se a agonia sentida por Mestre Sims, ao saber que seu fim se aproxima. Falta apenas a parte da cabeça para ele ser emparedado vivo.
Asilo Sinistro impressiona não só pela sua linguagem cinematográfica extremamente apurada, mas também por seus diálogos amargos, irônicos e cultos.
Na maior parte desses diálogos, os personagens revelam seu desprezo pelos loucos e os desafortunados, como pode ser comprovado por esta conversa entre Nell e William, quando a atriz conhece o quaker, na frente do hospício:
William: Vi quando bateu em Sims. Não devia ter feito isso.
Nell: Crê que eu tenha medo dele? Acha que ele pode me prejudicar?
William: Não temo pela senhorita. É pelos que estão internados aí que eu receio. Sims vai fazê-los pagar caro aquele golpe.
Nell: E quem lhe deu licença para me chamar a atenção? Nem sequer eu conheço o senhor..
O empregado de Nell informa-a de que Hannay é um quaker.
William: Meu nome é William Hannay. Sou da Sociedade dos Amigos.
Nell: Já ouvi falar de vocês. Sempre dão a outra face.
William: Ser quaker não é apenas voltar a outra face e tratar a todos como iguais. É sentir piedade pelos que estão lá dentro. Como a senhorita.
Nell: Acha que bati em Sims porque senti pena dos alienados?.
William: Vi isso em seu rosto.
Nell: Pena?! Não conheço tal sentimento, senhor. Bati em um homem porque tive vontade. Porque ele é uma coisa feia num mundo bonito.
William: Há muita coisa feia neste mundo bonito! Isso tem que mudar!
Nell: Senhor quaker, quando vim ao mundo, eu não usava veludo.
William: Já imaginava. E, embora haja gente como a senhorita, que enfrenta o cansaço de uma vida dura com espírito e inteligência, há milhares que não podem.
Nell: Não sinto piedade deles! Que façam como eu!
William: E os internados? Será que poderão se cuidar?
Nell: Tampouco sinto pena deles! São animais sem alma!
William: Isso não é verdade.
Nell: Acha que não? Pois vá a Vauxhall hoje, às oito horas da noite, e irá me ver rindo desses loucos que julga que eu lamento.
William: Não conseguirá rir desses pobres infelizes. Não creio. Tenho visto grandes damas que tinham corações de pedra, entretanto…
Nell: O meu é de pederneira. Às vezes, solta faíscas, mas não chega a se aquecer. Não tenho tempo para demonstrar amor e fraternidade pelos meus semelhantes.

William Hannay interpela Nell Bowen.
Asilo Sinistro impressiona os espectadores pelos seus planos invulgares; pela perfeição dos cenários, que, como ocorreu nos demais filmes produzidos por Val Lewton na RKO, foram aproveitados de outras fitas [por exemplo, o asilo tinha sido a igreja de Os Sinos de Santa Maria(The Bells of St. Mary’s, 1945), um Drama dirigido por Leo McCarey (Thomas Leo McCarey, 1898-1969) e estrelado por Bing Crosby (Harry Lillis “Bing” Crosby Jr., 1903-1977) & Ingrid Bergman (1915-1982)]; pela intercalação de gravuras de William Hogarth com as sequências, comentando-as ou funcionando como símbolos; pela fotografia expressionista de Nicholas Musuraca (1892-1975); pela música de Roy Webb (Royden Denslow Webb, 1888-1982); pela interpretação magistral de Anna Lee, no papel de Nell Bowen, uma mulher de mente sã que, de repente, tem de conviver com pessoas insanas; pela atuação de Elizabeth Russell, que interpretou a sobrinha de Mestre Sims, uma jovem vulgar, sem cultura, amante da bebida e que se torna a nova protegida de lord Mortimer…
Abre um parêntese.
Elizabeth Russell (1916-2002), que Joel E. Siegel chamou de “a atriz quintessencial de Val Lewton” (Val Lewton – The Reality of Terror, p. 103), já havia aparecido numa sequência memorável de Sangue de Pantera.
A tal sequência mostra a sérvia Irena Dubrovna (Simone Simon), Oliver Reed (Kent Smith) e um grupo de amigos sentados a uma mesa de um restaurante sérvio em Nova York. Eles estão ali para comemorar o casamento de Irena e Oliver. De repente, uma enigmática mulher de ar felino (Elizabeth Russell) aproxima-se da mesa, olha fixamente para Irena, e a chama de “moja sestra” (“minha irmã”, em Sérvio). Irena a encara. A mulher indaga: “Moja sestra?” Irena faz o Sinal da Cruz. A mulher dá uma última olhada em Irena e deixa o restaurante. Enquanto os demais ocupantes da mesa acham curioso o ocorrido, Irena fica assustada.

Elizabeth Russell, interpretando a mulher de ar felino, em Sangue de Pantera.
Apesar de ter sido pouco apreciado pelos executivos da RKO, Asilo Sinistro é a prova cabal de que, para se realizar um bom filme, não é necessário muito dinheiro, e sim muita imaginação e uma equipe de pessoas talentosas.
Asilo Sinistro (Bedlam, Estados Unidos, 1946, 79’)
Produção: Val Lewton
Direção: Mark Robson
Roteiro: Carlos Keith (Val Lewton) & Mark Robson
Fotografia: Nicholas Musuraca
Montagem: Lyle Boyer
Direção de Arte: Albert S. D’Agostino & Walter E. Keller
Música: Roy Webb
Direção Musical: C. Bakaleinikoff
Elenco: Boris Karloff (Mestre Sims), Anna Lee (Nell Bowen), Billy House (lord Mortimer), Richard Fraser (William Hannay), Elizabeth Russell (sobrinha de Mestre Sims), Glen Vernon (garoto dourado), Ian Wolfe, Jason Robards Sr., Leyland (Leland) Hodgson, Joan Newton, Ellen Corby, Frankie Dee
Companhia Produtora e Distribuidora: RKO Radio Pictures
Observação: Cada um dos filmes produzidos por Val Lewton para a RKO deveria ter um custo máximo de cento e cinquenta mil dólares. Asilo Sinistro foi a única fita em que esse custo foi elevado para trezentos e cinquenta mil dólares.

Três dos principais personagens de Asilo Sinistro: William Hannay, Nell Bowen e Mestre Sims.
R. F. Lucchetti (Rubens Francisco Lucchetti, 1930-2024) foi ficcionista e roteirista de Cinema & Quadrinhos.