D. H. LAWRENCE E APENAS UMA MULHER, UMA OBRA-PRIMA DA LITERATURA E DO CINEMA

Marco Aurélio Luchetti & R. F. Lucchetti
Edição: Marco Aurélio Lucchetti
“Apenas uma Mulher é realmente um filme bom e interessante.
Começa hesitante e lentamente, estabelecendo, como uma camada de concreto, o caráter de duas garotas e o relacionamento entre elas.
O ritmo e a qualidade das cores, suaves e artificiais, com muitas cenas fotografadas em sombras de vários tipos, transmitem uma sensação melancólica de que algo não está certo com todos.
O roteiro, escrito por Lewis John Carlino & Howard Koch, é inteligente.”
Renata Adler, na edição de 8 de fevereiro de 1968 do The New York Times

“As duas moças eram mais conhecidas pelos sobrenomes, Banford e March. As duas alugaram a granja, com a intenção de explorá-la sozinhas – iam criar galinhas, viver da avicultura; e pretendiam comprar também uma vaca para tirar cria. Infelizmente, o plano não deu certo.
Banford era uma coisinha franzina e delicada, e usava óculos; mas era a sócia principal, porque March quase não tinha dinheiro. O pai de Banford, comerciante em Islington, deu à filha a ajuda inicial, pensando na saúde dela, e porque ele gostava dela, e porque parecia que ela não iria se casar. March era mais robusta. Ela aprendera carpintaria e marcenaria em curso noturno em Islington, e seria o homem da casa. Nos primeiros tempos elas tiveram a companhia do avô de Banford, agricultor já aposentado. Mas, depois de um ano na granja, o velhinho morreu, e as duas moças ficaram sozinhas.
Nenhuma das duas era muito jovem – andavam se aproximando dos trinta, e isso prova que também não eram velhas. Elas começaram o trabalho com muita coragem.”
Esses são os primeiros parágrafos de Apenas uma Mulher (The Fox, no original), novela escrita pelo poeta, novelista, romancista e crítico inglês D. H. Lawrence.

D. H. Lawrence (David Herbert Lawrence, 1885-1930) e sua esposa, Frieda Lawrence (nascida Emma Maria Frieda Johanna Freiin von Richthofen, 1879-1956), numa foto tirada no ano em que se casaram, 1914.
D. H. Lawrence nasceu em Eastwood, que está assim descrita no segundo volume de Os Imortais da Literatura Universal (São Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 150):
“Eastwood, perto de Nottingham, parece mais uma aldeia do que uma cidade. Uma cidade de onde se extrai carvão há séculos. No entanto, as minas são quase um acidente na paisagem embelezada pelo arenito de cor viva, pelos carvalhos da floresta do lendário Robin Hood, pelas austeras colinas de calcário da província do Derbyshire.
Num dia qualquer, na segunda metade do século 19, chegaram os capitalistas e as estradas de ferro. E o cenário aos poucos foi-se modificando. As pequenas cabanas dos mineiros foram substituídas por casas de tijolos. O arcaico processo de extração mineral modernizou-se. Grandes hulheiras foram construídas. E os trilhos das ferrovias foram assentados nos terrenos de lavoura, morros e bosques. Contudo, mesmo assim, a paisagem ainda é bela.”

A casa onde D. H. Lawrence nasceu, o número 8 da Victoria Street, em Eastwood, é atualmente o D. H. Lawrence Birthplace Museum, que possui alguns objetos originais da família do escritor.
Quarto filho de Arthur John Lawrence, um mineiro (um desses mineiros alcoólatras e rudes) quase analfabeto que tinha o hábito de comer usando um canivete de mola e tomar chá num pires, e de Lydia Lawence (nascida Lydia Beardsall), uma ex-professora de modos refinados, D. H. Lawrence foi um dos autores britânicos cujos escritos mais suscitaram polêmicas e opiniões controversas. Sua obra, apesar de considerada renovadora na estética da literatura inglesa do século 20, ainda hoje é incompreendida por muitos leitores, que a julgam vulgar e indecente. Há, inclusive, leitores – aqueles que são hipócritas (defendem, da boca para fora, um puritanismo que eles próprios não seguem de modo algum) e/ou destituídos de massa cinzenta (acreditamos que chegaram tarde na hora da distribuição dos cérebros) – que a consideram pornográfica.
Após concluir a escola secundária, D. H. Lawrence trabalhou como escriturário. Mas, três meses depois, devido a uma grave pneumonia, teve de abandonar o emprego.
Tão logo curou-se da pneumonia, ele tornou-se mestre-escola e, durante três anos, ensinou os filhos dos mineiros.
Nessa época, incentivado por Jessie Chambers, uma jovem que conhecera quando convalescia da pneumonia, D. H. Lawrence aprendeu a tocar piano e a pintar.
Abre um parêntese.
Algumas das primeiras aquarelas do escritor encontram-se expostas no D. H. Lawrence Birthplace Museum.
Fecha o parêntese.
Também estimulado por Jessie, D. H. Lawrence aperfeiçoou seus conhecimentos literários, lendo os romances de Emily Brontë, George Eliot e Thomas Hardy. Mais tarde, ele descobriria os poetas John Keats e Percy Byshe Shelley, além das peças de Shakespeare.

Na foto acima, Jessie Chambers.
Certa vez, D. H. Lawrence disse a respeito de Jessie Chambers: “A garota me lançou, tão facilmente, na minha carreira literária, como uma princesa cortando uma fita, lançando um navio.”
Em 1906, D. H. Lawrence ingressou na Universidade de Nothingham e começou a escreveu seu primeiro romance, The White Peacock (O Pavão Branco), publicado, sem maiores repercussões, em 1911.

Capa de uma edição recente do romance de estreia de D. H. Lawrence.
Foi com a publicação, em 1913, de Sons and Lovers (Filhos e Amantes), um romance praticamente autobiográfico, que D. H. Lawrence se tornou figura conhecida nos meios literários ingleses e passou a ser reconhecido como um escritor importante.
Filhos e Amantes descreve-nos o ambiente doméstico de uma família de mineiros. Seus personagens principais são a sra. Morel e seu filho Paul, um rapaz fraco e de temperamento artístico.
No oitavo volume de sua monumental e imprescindível História da Literatura Ocidental (é, sem dúvida, a maior e melhor história da Literatura que se conhece em qualquer língua e em todo o mundo), o crítico e ensaísta austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux se referiu a Filhos e Amantes com estas palavras:
“Primeira grande revelação do talento de D. H. Lawrence, Filhos e Amantes é um romance psicanalítico, antes de a psicanálise se tornar moda e antes de o autor conhecê-la. Da relação entre filho e mãe os psicanalistas pretendem deduzir a literatura inteira de Lawrence e elucidar a psicologia do escritor.”
E, num texto datado de 1943, o ensaísta, escritor, memorialista e crítico literário português João Gaspar Simões escreveu o seguinte sobre Filhos e Amantes:
“É o mais forte romance de D. H. Lawrence. É um dos romances mais extraordinários que se escreveram no mundo. O problema que se debate neste livro é psicológico. Não cientificamente, como acontece em certos romances modernos, mas transpondo para a arte um complexo tão diretamente vivido que dir-se-á assistirmos à ressurreição da tragédia grega. Surge neste livro o doloroso e estranho drama de Édipo. De fato, houve quem afirmasse na Inglaterra (Middleton Murry) que a arte de Lawrence era fruto desse complexo psicanalítico. Filhos e Amantes é, realmente, o romance mais autobiográfico deste escritor, e nele se pinta a angústia de um filho tolhido em seus amores por uma espécie de secreta paixão: a paixão pela própria mãe. Assim, ao longo deste empolgante romance, em que assistimos ao malogro de todos os amores de Paul Morel, a figura que domina o quadro e absorve a vida em roda é a da mãe. Eis porque, quando finda a sua lenta, dilacerante e patética agonia, nós sentimos, como aliás o sente o próprio filho, que qualquer tirania acabou, que uma vida nova vai começar. A própria obra de Lawrence é como que a sublimação desse amor impossível.”
Bem, se Filhos e Amantes é “o mais forte romance de D. H. Lawrence”, a mais forte novela do escritor é, indubitavelmente, The Fox (A Raposa, numa tradução literal), acerca da qual, numa resenha publicada na edição de 5 de dezembro de 2002 do The New York Review of Books, a escritora britânica Doris Lessing afirmou:
“A atmosfera de The Fox é tão forte que podemos facilmente esquecer o quão firmemente ela está fixada em seu tempo e lugar. A Primeira Guerra Mundial acabou de terminar e os soldados estão voltando para casa. Deve ser 1919, porque a grande epidemia de gripe fez vítimas na aldeia próxima. A pequena granja onde duas jovens, March e Banford, estão tentando a independência é sombreada pela guerra. Elas estão falhando, elas não sabem como cultivar. Emocionalmente, elas também não estão indo muito bem: há desolação e medo pelo futuro. O desânimo encontra uma entrada fácil, e elas têm um inimigo visível, uma raposa que rouba suas preciosas galinhas. É decidido que esse ladrão deve ser morto, mas ele é esperto demais para elas. Este animal obceca March, a mais forte das duas mulheres. Desde o início, esta fera é mais do que ela mesma.”
Publicada originalmente em 1922, na revista literária estadunidense The Dial, The Fox é uma novela sombria e trágica. Tão trágica quanto qualquer tragédia escrita por Sófocles ou Eurípedes.
Ousamos dizer que The Fox é uma fábula moderna, escrita – de forma sucinta (tem somente oitenta e sete páginas) e precisa (D. H. Lawrence não desperdiçou palavras, não detalhou nada além do necessário) – num tom poético, em que somos inseridos lentamente no dia a dia nada fácil de duas mulheres ainda jovens que vivem praticamente apartadas do mundo. É um extraordinário e emocionante estudo sobre os sentimentos profundos e violentos, quando um triângulo se forma ao surgir, primeiramente, uma raposa e, depois, um rapaz, Henry Grenfel, na vida das duas mulheres, Jill Banford e Ellen March, que moram juntas numa pequena granja.
Enfim, The Fox é perfeita. Não por acaso foi escolhido como um dos 1001 Livros para Ler Antes de Morrer (ocupa a posição 724).
Tomamos conhecimento do texto de The Fox em 1977, por intermédio da tradução em Português feita por José Veiga e publicada num livro lançado, em formato paperback (aproximadamente 10,5 x 18 cm), pela Edibolso, de São Paulo.

Capa do livro da Edibolso com o texto em Português da novela The Fox.
Essa edição da Edibolso foi autorizada pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S.A., do Rio de Janeiro, que era então a detentora dos direitos da tradução realizada por José Veiga.
Curiosamente, ou melhor, coincidentemente, quase na mesma época (só não nos recordamos se foi pouco antes ou pouco depois de termos adquirido o volume publicado pela Edibolso), assistimos na Sessão de Gala, da TV Globo, à adaptação cinematográfica de Apenas uma Mulher.
Também intitulado Apenas uma Mulher, o filme, uma produção canadense dirigida por Mark Rydell, estreou nos cinemas do Canadá em 13 de dezembro de 1967. Trouxe a norte-americana Sandy Dennis no papel de Jill Banford; e a inglesa Anne Heywood, no de Ellen March.

Anne Heywood (nascida Violet Joan Pretty, 1931-2023) e Sandy Dennis (Sandra Dale Dennis, 1937-1992), interpretando respectivamente Ellen March e Jill Banford, numa cena de Apenas uma Mulher.
Nos Estados Unidos, o filme estreou em fevereiro de 1968.
No Brasil, ele só estrearia em 1969, após ter ganho o Golden Globe de Melhor Filme Estrangeiro em Língua Inglesa.
Abre outro parêntese.
Apenas uma Mulher concorreu em outras três categorias do Golden Globe: Melhor Diretor, Melhor Roteiro e Melhor Atriz em Filme – Drama. Infelizmente, não venceu em nenhuma.
Fecha esse parêntese.


Por sua atuação em Apenas uma Mulher, Anne Heywood foi indicada ao Golden Globe de Melhor Atriz em Filme – Drama. Não ganhou o prêmio, mas deveria ter ganhado.
Em 1968, quase simultaneamente com o lançamento de Apenas uma Mulher nos Estados Unidos, a editora londrina Sphere Books lançou, no formato paperback, um livro com o texto da novela de D. H. Lawrence. O livro teve diversas edições consecutivas, e a capa de uma dessas edições reproduz uma das cenas mais marcantes e mais fortes da fita.


O filme, bastante fiel à novela (uma das poucas modificações: enquanto na novela a ação se passa na Inglaterra de 1918; no filme, ela transcorre no Canadá dos anos 1960) conta a história de Jill Banford e Ellen March, duas amigas não muito jovens – ambas têm menos de trinta anos de idade – e de certa beleza, que, para se sustentarem, criam galinhas numa granja. O local onde se encontra instalada a granja é isolado, gelado e tem um bosque. A submissa Jill (é a de cabelos mais claros) cuida dos afazeres domésticos (é ela quem cozinha, por exemplo) e administra as finanças, enquanto a autossuficiente e forte Ellen (é a de cabelos mais escuros) encarrega-se dos trabalhos mais pesados, como cortar lenha e consertar cercas. Apesar de estarem afastadas do resto do mundo, tendo apenas uma à outra, Jill e Ellen sentem-se felizes. Porque escolheram aquele lugar para habitar. Escolheram igualmente aquela maneira de viver.

À noite, Jill e Ellen dividem a mesma cama.
Hummm… Não é bem assim. Parece que quem escolheu ir morar naquele fim de mundo é a mais falante e a mais sorridente das duas mulheres: Jill. Ela teme pelo futuro e sabe que não irão ficar ricas criando galinhas. Está sempre reclamando da situação financeira e fazendo contas. Ao mesmo tempo, porém, de acordo com suas próprias palavras, “nunca se sentiu tão segura, tão em casa”… sem ter ninguém lhe mandando. E a srta. Banford tudo faz para agradar a companheira, a taciturna e, às vezes, um tanto cruel Ellen, que, apesar de não confessar para a amiga, se sente infeliz vivendo num lugar tão desolado. Além disso, ela é corroída por desejos sexuais.
Ah, os desejos sexuais da srta. March!
Ellen não tem outra saída, a não ser se consolar sozinha no banheiro.
Devemos lembrar que Apenas uma Mulher é um filme destinado ao público adulto e foi realizado numa época em que tabus estavam sendo rompidos. Portanto, tem cenas fortes. Uma delas é a que Ellen, completamente nua, masturba-se no banheiro. Não é uma cena grosseira nem apelativa. Faz parte de um contexto. Além do mais, toda a carga erótica concentra-se nos gemidos e expressões da personagem, que tem sua imagem refletida nos espelhos do cômodo. E dizemos mais: nessa cena não vemos uma atriz interpretando uma personagem que se entrega ao prazer solitário. Vemos, sim, uma mulher carente que é obrigada a apelar para a masturbação, a fim de satisfazer seus desejos. São em momentos assim que percebemos o quão grande é/era uma atriz ou um ator. Não vemos à nossa frente a/o intérprete, mas apenas a/o personagem.

Uma bela imagem de Apenas uma Mulher, mostrando a personagem Ellen March.
Mas, voltando à vaca fria: tudo segue tranquilo, até que… até que, certo dia, surge o primeiro elemento que irá desestabilizar o cotidiano das duas mulheres: uma raposa, que passa a assustar, atacar e matar as galinhas, para desespero de Jill.
Ellen tenta, sem sucesso, caçar e abater o animal, com um tiro de sua espingarda de cano duplo.
Em outra ocasião, a srta. March e a raposa ficam frente a frente.
É uma sequência memorável, que revela o talento dos dois roteiristas, o talento do cinegrafista, William Fraker, e o talento do montador, Thomas Stanford.


A referida sequência inicia-se com a srta. March embevecida, contemplando seu reflexo na água do riacho que corre nas proximidades da granja. Em seguida, ela retira as luvas de lã e o gorro aviador, sem se importar com o frio. Sacode os cabelos, num gesto bem feminino, e apalpa os seios por cima do grosso casaco. Sente-se mulher. De repente, ao se voltar, vê, a poucos metros de distância, a raposa olhando-a fixamente. O animal aparenta não estar sentindo nenhum medo de Ellen. Pelo contrário, está confiante e com um olhar desafiador, como se estivesse a dizer para o ser à sua frente: “Então? Que é que você vai fazer?” A srta. March, por sua vez, tem plenas condições de atirar na raposa, já que está com a espingarda. Entretanto, não dá um único tiro. Nem mesmo aponta a arma para o animal. Parece estar mesmerizada por ele. Por fim, a raposa foge, embrenhando-se no bosque. Tudo isso é contado/mostrado numa sucessão rápida de diversos enquadramentos: plano médio da srta. March, primeiríssimo plano da raposa, primeiro plano da srta. March, primeiríssimo plano da srta. March, plano de detalhe dos olhos da srta. March, primeiríssimo plano da raposa, primeiríssimo plano da srta. March, plano de detalhe dos olhos da raposa, plano de detalhe dos olhos da srta. March, primeiríssimo plano da raposa, plano médio da srta. March, plano médio da raposa e plano de detalhe dos olhos da raposa. Há um corte quase imperceptível e, a seguir, a raposa mostra-se por inteiro, correndo na neve e desaparecendo entre as árvores. Novo corte. Primeiro plano da srta. March. Depois, travelling de avanço, até fechar em primeiríssimo plano da srta. March.
Corta para a sequência seguinte.
É hora do jantar.
Jill e Ellen encontram-se sentadas à mesa do jantar, conversando.
A parte final da conversa merece ser transcrita aqui:
Ellen: Vi a raposa hoje. Ela estava bem perto. Eu tinha a arma, mas não atirei.
Jill: por que não atirou?
Ellen: Não sei. Ela olhou para mim. E eu olhei para ela. Ela não tinha medo. Apenas me olhava.
Jill: isso não faz o menor sentido.
Ellen: Eu sei. Continuo pensando nisso, desde que voltei.
Jill: Estava com a arma?.
Ellen: Já disse que sim.
Jill (irritada): Se tinha a arma, por que não atirou?.
Ellen: Não sei. Eu… fui pega de surpresa. Ela olhava para mim. Para dentro de mim. Ficou parada.
Jill: Não estava assustada?
Ellen: Não.
Jill: Oh, March… March, não faz sentido.
Ellen: Foi o que aconteceu.
Jill: Isto é ridículo!.
Ellen: Sim, é mesmo. Mas… o que aconteceu foi diferente. E… muito estranho.
Um fato curioso: Jill está sempre falando o nome, ou melhor, o sobrenome da amiga. No entanto, são raras as vezes que Ellen pronuncia o nome ou o sobrenome de Jill.
Por falar em nomes...
Jill e Ellen têm uma vaca. Ela se chama Eurídice, que é o mesmo nome de uma das ninfas da Mitologia Grega.
Segundo a lenda, certo dia, enquanto passeava com algumas de suas companheiras (de acordo cm outra versão, o fato se deu quando ela fugia do pastor Aristeu, que tentava violentá-la), Eurídice foi picada por uma serpente e faleceu. Desesperado pela morte de sua querida esposa, Orfeu, que se distinguia por seus dons de músico e poeta, desceu ao Mundo Inferior, o reino dos mortos. Então, Orfeu começou a cantar, em homenagem à sua amada. Emocionado com o mavioso canto, Hades, o deus do Mundo Inferior, trouxe Eurídice de volta à vida e consentiu que Orfeu partisse com ela. Mas com uma condição: Orfeu não poderia, de modo algum, olhar para Eurídice, até que houvessem transposto os limites do Mundo Inferior. Infelizmente, no momento em que estavam prestes a deixar o Mundo Inferior, Orfeu, não mais podendo resistir, olhou para a esposa recém-ressuscitada. Imediatamente, Eurídice retornou ao Reino Inferior, e Orfeu nunca mais voltou a vê-la.
Feita essa digressão, vamos voltar a falar do filme Apenas uma Mulher.
Numa noite de inverno, aparece o segundo elemento desestabilizador: Paul (essa é outra diferença em relação ao texto de D. H. Lawrence. Na novela, ele se chama Henry) Grenfel (interpretado por Keir Dullea), um marujo da Marinha Mercante.
Paul está de licença e chega à procura do avô, William, o antigo proprietário da granja.
Abre mais um parêntese.
Imediatamente, fazemos uma analogia entre Paul Grenfel e a raposa. O animal ameaça as galinhas e faz estragos no galinheiro. Sendo um homem, Paul ameaça a harmonia existente entre Jill e Ellen. Faz estragos nessa amizade.
Na novela, é March que faz a analogia entre Paul e a raposa:
“Para March, ele era a raposa. Mas o que a fez pensar isso? O projetar da cabeça para frente? O brilho dos finos pelos claros no rosto corado? Ou os olhos agudos e brilhantes? Impossível saber. Mas, para ela, aquele rapaz era a raposa; e ela não via nele outra coisa.”
Fecha esse novo parêntese.

Keir Dullea, interpretando Paul Grenfel.
Paul descobre que o avô faleceu no inverno anterior.
Sem ter para onde ir, Paul acaba convencendo Jill e Ellen a deixá-lo ficar com elas durante o tempo que durar sua licença (quinze dias), em troca de ele ajudá-las nos trabalhos mais exaustivos.
Os dias vão passando.
Paul conversa mais com Jill. Porém, ele e Ellen parecem ter meios não-verbais de comunicação. E, pouco a pouco, Paul sente-se atraído por Ellen, despertando o ciúme e o ressentimento de Jill. Uma relação de amor e ódio estabelece-se entre os três personagens. A tranquilidade e a harmonia estão quebradas para sempre.
O interessante é que, no início, é a srta. March quem fica incomodada com a chegada e a presença de Paul. Depois, ao perceber que Paul está interessado na amiga, é Jill quem deseja que ele parta o mais depressa possível. Chama-o, inclusive, de “vagabundo”.

Sandy Dennis, Keir Dullea e Anne Heywood, numa cena de Apenas uma Mulher.
Para finalizar, transcrevemos o que disse o crítico Roger Ebert, na edição de 22 de abril de 1968 do jornal Chicago Sun-Times, a respeito de Apenas uma Mulher:
“Uma obra-prima poderosa. A atmosfera delicadamente construída de frio e neve, de pores do sol precoces e frio persistente estabelece o tom. Miss Dennis tem um papel difícil, que poderia ter se tornado ridículo; mas ela o administra bem. Por sua vez, Dullea tem uma atuação mais consistente do que aquela que teve em algumas películas mais recentes, em que interpretou uma série de personagens inseguros e fracos. Desta vez, representando uma figura dominadora, ele é totalmente bem-sucedido. E encontra seu par perfeito em Miss Heywood.”

Sandy Dennis, numa cena de Apenas uma Mulher.

Keir Dullea e Anne Heywood, numa cena de Apenas uma Mulher.

Cartaz orginal do filme Apenas uma Mulher.
O cartaz foi realizado por Leo Dillon (Lionel John Dillon Jr., 1933-2012) e sua esposa, Diane Dillon (nascida Diane Sorber), muito conhecidos por ilustrarem livros infantis e fazerem ilustrações para capas de paperbacks de Ficção Científica.
Apenas uma Mulher (The Fox, Canadá, 1967, 110’)
Direção: Mark Rydell
Produção: Raymond Stross
Roteiro: Lewis John Carlino & Howard Koch, baseando-se na novela homônima de D. H. Lawrence
Fotografia: William Fraker
Montagem: Thomas Stanford
Música: Lalo Schifrin
Elenco: Sandy Dennis (Jill Banford), Anne Heywood (Ellen March), Keir Dullea (Paul Grenfel), Glyn Morris (Overstreet)
Marco Aurélio Lucchetti é professor universitário e pesquisador de Cinema, Quadrinhos e livros popularesi
R. F. Lucchetti (Rubens Francisco Lucchetti, 1930-2024) foi ficcionista e roteirista de Cinema & Quadrinhos.