O ESCORPIÃO ESCARLATE DO ROTEIRO À TELA – PRIMEIRA PARTE

Josette Monzani
E
dição: Marco Aurélio Lucchetti

Ao Luiz,
que me fez
compreender
o universo
do Terror e
do Suspense…

Rubens Francisco Lucchetti (falecido em 4 de abril de 2024, ele era mais conhecido como R. F. Lucchetti), até chegar à redação do roteiro d’O Escorpião Escarlate1, teve uma longa e personalíssima trajetória: do conto aos quadrinhos, passando pelos roteiros de filmes e scripts de programas de televisão – em parceria com José Mojica Marins, entre outros – e pelo romance e o seriado radiofônico, dados já conhecidos por seus leitores e admiradores2.

Rubens Francisco Lucchetti, em seu escritório, em sua residência, em Jardinópolis, uma das cidades da macrorregião de Ribeirão Preto (SP).
F
oto tirada em 2013 por Gabriel “Billy” Castilho.

Na foto acima, José Mojica Marins (1936-2020), interpretando o prof. Oaxiac Odez, numa cena de “Ideologia”, o terceiro episódio de O Estranho Mundo de Zé do Caixão.
Lançado em 1968,
O Estranho Mundo de Zé do Caixão, cujo roteiro foi escrito nos primeiros meses de 1967, deu início à parceria Rubens Francisco Lucchetti-Josè Mojica Marins. Essa parceria se estenderia até meados de 1969.   

O Escorpião Escarlate traz, portanto, marcas do caminho percorrido, perceptíveis em sua leitura: “penetrar na casa em que (os objetos) estão é conhecer as aventuras afetivas de seus moradores”3.
Alguns rastros da obra lucchettiana:
– Desenhista, poeta; mas, sobretudo, ficcionista (não gostava de ser chamado de escritor. Costumava dizer: “Não sou um escritor. Sou um ficcionista. Crio ficções.”);
– Segundo ele próprio, seu conto “A Única Testemunha” foi “escrito sob o impacto da leitura de ‘O Coração Revelador’ e ‘O Gato Preto’, de Poe”4, uma de suas grandes influências, como se sabe;

O escritor, editor e crítico estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), que muito influenciou nos textos de Rubens Francisco Lucchetti.

– Madame Ming, inspirada na Madame Dragão dos quadrinhos, no roteiro original d’O Escorpião Escarlate, carrega sempre um gato preto no colo, indicando a ligação desse animal com forças do Mal, bastante usual no Terror, efeito reforçado pela indicação do vestido vermelho e do nome do gato5, Satã;

A vilã Madame Dragão (Dragon Lady, no original), uma criação do quadrinista norte-americano Milton Caniff (Milton Arthur Paul Caniff, 1907-1988), é uma das principais personagens femininas das tiras diárias (em preto e branco) e páginas dominicais coloridas da história em quadrinhos Terry e os Piratas (Terry and the Pirates).
O
 quadrinho acima é da tira datada de 25 de setembro de 1936.

A sádica Madame Ming, interpretada pela modelo fotográfico e manequim carioca Monique Evans (nome artístico de Monique Rezende Nery da Fonseca), escuta atentamente o que diz seu chefe, o Escorpião Escarlate, numa cena do filme O Escorpião Escarlate.

Nesta foto, feita a partir de um fotograma de O Escorpião Escarlate, três criminosos da pesada: Hop-Frog (Felipe Falcão), Madame Ming e Caveira (Sandro Solviatti).

– Um dos asseclas do Escorpião é, no roteiro, Hop-Frog, nome de um conto de Poe;
– Criou o personagem O Morcego no roteiro original de O Escorpião Escarlate, numa homenagem a O Sombra (das revistas Pulp, seriados radiofônicos, seriados cinematográficos e quadrinhos) e aos heróis mascarados, também frequentes no Mistério e no Suspense6;

Capa de um número (o datado de 1º de novembro de 1932) de The Shadow Magazine, a revista Pulp em que eram publicadas as histórias em texto de O Sombra (The Shadow). Algumas dessas histórias apareceram, em nosso país, em Misterios (o título era assim mesmo, sem acento no “e”), Contos Magazine e Policial em Revista.
D
e propriedade da Street & Smith Publications, de Nova York, e de periodicidade mormente quinzenal, The Shadow Magazine circulou de 1931 a 1949. Ao todo, foram lançados trezentos e vinte e cinco números.
D
eve ser destacado que as histórias de O Sombra foram escritas, em sua maioria, por Walter Brown Gibson (1897-1885), que as assinava com um pseudônimo criado por ele, mas que pertencia à Street & Smith: Maxwell Grant.

Walter Brown Gibson, quando jovem.  

– Homenageou ainda, conscientemente, na primeira versão do roteiro, outras entidades e personagens, várias delas suprimidas pelo diretor do filme;
– Enfim, Lucchetti conhece e domina muito bem o universo povoado por múmias, fantasmas, vampiros, monstros, plantas carnívoras, gênios megalomaníacos, bichos esotéricos, seres mutantes, instrumentos de tortura, castelos, pântanos, porões, cavernas misteriosas7. O sobrenatural e o fantástico lhe são familiares em todas as suas particularidades8.
Na realização d’O Escorpião Escarlate, o roteirista uniu-se ao cineasta carioca Ivan Cardoso (Ivan do Espírito Santo Cardoso Filho).

Ivan Cardoso, numa foto tirada em 20 de agosto de 2009, durante uma sessão de autógrafos do livro Ivan Cardoso o Mestre do Terrir.

Ivan Cardoso e Rubens Francisco Lucchetti, no Hotel Quitandinha, em 1984, durante as filmagens de As Sete Vampiras.
Fo
to tirada por Sergio Pagano.

A trajetória de Ivan:
– Fotógrafo e cineasta, um homem de “imagens”, portanto;
– Pertence a uma geração (imediatamente posterior à de Lucchetti) que assistiu a matinês no cinema e, mais tarde, teve oportunidade de discutir questões ligadas à linguagem e à produção cinematográfica, via proliferação de cineclubes, cinematecas etc. e as polêmicas geradas pelos cineastas do Cinema Novo;
– Foi assíduo ouvinte dos seriados que iam ao ar pela Rádio Nacional, do Rio de Janeiro: O Cavaleiro da Noite (escrito por Aloísio de Oliveira), As Aventuras do Anjo (criado por Péricles do Amaral) e Jerônimo, O Herói do Sertão (criado por Moysés Weltman);
– Quando adolescente, assistia aos seriados Dangerman, Os Lanceiros de Bengala, Cidade Nua, Além da Imaginação, O Fugitivo, Maverick, 77 Sunset Street, Ivanhoé, Bat Masterson, Os Invasores, Impacto, As Aventuras de Rin Tin Tin, Bonanza, Jornada nas Estrelas, Os Monstros, Os Intocáveis e Vigilante Rodoviário;

Na foto, em primeiro plano, Roy Thinnes, interpretando David Vincent, o protagonista de Os Invasores (The Invaders, 1967-1968), um dos seriados assistidos por Ivan Cardoso, para quem a televisão foi um veículo de formação e informação.  

– No Cinema, começou via Super 8 (dentro do movimento denominado “udigrúdi”, rival em potencial dos cinemanovistas), “lá por 1971, deixando alguns exemplares antológicos [Nosferato no Brasil, Sentença de Deus, Amor & Tara, Alô Alô Cinédia, História dos Mares do Sul, Chuva de Brotos – multiparódias das metaparódias de Julio Bressane9], passando a curtas-metragens em 16/35 mm do melhor naipe (O Universo de Mojica Marins, Dr. Dyonélio, HO, A História de um Olho). Entre aqueles Super 8, não se pode esquecer A Múmia Volta a Atacar, embrião da atual Múmia de Mu”10;

O poeta, jornalista e letrista de música popular Torquato Neto (Torquato Pereira de Araújo Neto, 1944-1972), numa cena de Nosferato no Brasil.  

– Herdeiro direto do “cinema de invenção” de Rogério Sganzerla11, próximo da vanguarda – realizou HO(1979), com e sobre a obra do artista plástico carioca Hélio Oiticica, com texto poético de Haroldo de Campos e narração de Décio Pignatari;
– Vivencia os anos dourados (com seu rock “maneirinho”) e o Rio de Janeiro cheio de glamour
Algo que não posso esquecer de dizer: Lucchetti e Ivan foram fortemente influenciados pelos seriados cinematográficos norte-americanos realizados nas décadas de 1930 e 1940. Porém, enquanto Lucchetti os assistiu em cinemas de São Paulo e Ribeirão Preto, Ivan os viu na televisão.

Uma cena de um seriado de cinema que Rubens Francisco Lucchetti e Ivan Cardoso devem ter assistido: A Garra de Ferro (The Iron Claw, 1941).  

NOTAS:

1A primeira versão do roteiro foi enviada a Ivan em 1987, segundo depoimento de Lucchetti à autora. É essa versão, a predileta do roteirista (informação a nós concedida por Lucchetti em 29 de março de 1994, numa missiva), que estamos usando na análise comparativa com o produto final, o filme. A primeira versão tem como personagem principal O Morcego, que começou a ser concebido por Lucchetti em 1944, inspirado em O Sombra (depoimento do mesmo, em outra missiva, datada de 27 de abril de 1994). A segunda e a terceira versões do roteiro foram realizadas em 1988, segundo seu autor. A quarta versão, utilizada nas filmagens, é também de 1988.
Um adendo: a primeira versão do roteiro foi publicada em 2015 pela Editora Laços, de São Paulo, em O Escorpião Escarlate Roteiro Original de R. F. Lucchetti, livro organizado por Marco Aurélio Lucchetti, filho do Rubens.

Capa do livro O Escorpião Escarlate Roteiro Original de R. F. Lucchetti.
A capa foi realizada pelo Graphicinema Estúdio, de Franca (SP).
Design de Fernando Ferreira Garróz & Marcos Spineli.

231 de outubro de 1942, publicação do primeiro conto, “A Única Testemunha”, no jornal paulistano O Lapiano. Essa mesma história também foi a primeira transformada em história em quadrinhos, em 1964, e publicada no segundo número da revista O Corvo. Lucchetti ainda escreveu para diversas revistas Pulp (Policial em RevistaX-9Contos de MistérioEmoção, entre outras), produziu inteiramente todo o conteúdo da revista Série Negra (então, usou vários pseudônimos, para dar ideia ao leitor de que eram muitos autores), roteirizou aproximadamente trezentas histórias em quadrinhos, é autor de um grande número de livros (esses livros, em sua maioria, foram publicados no formato de bolso e lançados pelas editoras Outubro, Cedibra e Fittipaldi).
Em 2014, a Editorial Corvo, do Rio de Janeiro, deu início à Coleção R. F. Lucchetti, destinada a publicar parte da obra de Rubens Francisco Lucchetti. Até o presente momento (setembro de 2025), já foram lançados dezesseis volumes, todos no formato 13 x 18 cm. Segundo o Marco Aurélio, que é o editor da coleção, só falta ser publicado um volume, cujo título será Devaneios.

Capa de um dos volumes, o 12, lançado em 2019, da Coleção R. F. Lucchetti.
A ilustração da capa é de um mestre do Desenho: o luso-brasileiro Jayme Cortez (nascido Jaime Cortez Martins, 1926-1987). 

3Bosi, E. Memória e Sociedade, Lembranças de Velhos, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 441.

4Informação dada à autora, numa carta escrita em 1994.

5Ver, como exemplos,
sequência 13 do roteiro: “Madame Ming tem feições orientais e veste um vestido justo e lustroso, com uma abertura numa das laterais. O vestido escuro e o preto dos seus cabelos realçam a brancura da tez da mulher, tornando-a uma visão sensual. Com seus longos dedos, acaricia um gato preto junto ao colo”;
sequência 48: “Madame Ming, trajando um vestido (de preferência, vermelho brilhante) muito justo, acaricia o gato junto ao colo. (…) MING – Primeiro, vou ter de dar leitinho ao Satã”;
e sequência 128: “Enquanto acaricia o gato junto ao colo, Madame Ming observa, através de uma tela, o Escorpião Escarlate conversando com Maggie”.

6Diz Lucchetti, em 7 de abril de 1991, à autora: “Minha ideia (ao criar O Morcego) era a de homenagear, a um só tempo: os heróis mascarados que vêm desde os folhetins do século passado, os seriados de rádio (não as novelas, que eram outra coisa; o seriado de rádio era praticamente o do Cinema transplantado para sons), os seriados cinematográficos e as histórias em quadrinhos.”

7Certa vez, Cosme Alves Netto (1937-1996), que, por mais de duas décadas, foi diretor da Cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro (à frente da Cinemateca do MAM do Rio, Cosme viabilizou não apenas a preservação de muitas obras visuais, mas também o resgate de filmes considerados perdidos) referiu-se a Lucchetti da seguinte maneira: “Um recriador e atualizador delirante de toda uma mitologia do Horror (múmias, vampiros etc.).”      

8Além de produzir exaustivamente, Rubens Francisco Lucchetti leu ou assistiu e colecionou livros, quadrinhos e filmes (em película, Super 8 mm, VHS, DVD e Blu-ray) sobre esse tema, num arquivo babilônico monumental guardado em sua casa.
Atualmente, esse acervo pertence e é conservado pelo Marco Aurélio, doutor em Artes – Cinema pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP (Universidade de São Paulo).  

9Atentar para a produção de Ivan junto a Bressane – Alô Alô Cinédia (1973), História dos Mares do Sul (1975) e A História de um Olho (1986) –, relacionada com a Chanchada e a paródia. E, também, Os Bons Tempos Voltaram (episódio: “Sábado Quente”), de 1984: uma paródia dos musicais juvenis norte-americanos da época da Jovem Guarda.

10Ferreira, J. Cinema de Invenção, São Paulo, Max Limonad/Embrafilme, 1986, p. 245 (negrito nosso, salientando suas produções já próximas do Terror). Ivan realizou After Midnight, baseado em Mojica, em 1972, e, em 1978, um documentário colorido, O Universo de Mojica Marins. Foi em 1977 e por intermédio de Mojica que Ivan conheceu Lucchetti.

11Conferir: Ferreira, J. Op. cit., p. 241. Ivan trabalhou com Sganzerla em Sem Essa, Aranha, em 1970, no início de sua carreira. Ainda, como Sganzerla, Ivan “goza” os temores, os pesadelos e os heróis da burguesia. “Quem tiver um sapato não sobra”, de O Bandido da Luz Vermelha (1968), vale bem para Ivan também.

Helena Ignez e Maria Gladys, numa cena de Sem Essa, Aranha.
Em
Sem Essa, Aranha, Ivan Cardoso foi assistente de Rogério Sganzerla (1946-2004).

Josette Monzani é doutora pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e professora de Roteiro e Linguagem Cinematográfica no Bacharelado em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É estudiosa do cinema brasileiro (estuda principalmente os filmes de Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Ivan Cardoso e Glauber Rocha). Vem se dedicando à pesquisa da obra de Rubens Francisco Lucchetti desde a década de 1980. Tem vários artigos publicados em jornais, revistas científicas e livros.


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