UM BEIJO ROUBADO

UMA AMOSTRA DE COMO UM CINEASTA ESTRANGEIRO PODE MIGRAR PARA HOLLYWOOD SEM SACRIFICAR SUA ALMA
João Rodolfo Franzoni
Edição: Marco Aurélio Lucchetti
Sempre que um diretor europeu, latino-americano ou asiático – como é o caso de Wong Kar-Wai, de Hong Kong – decide aventurar-se em solo estadunidense, nada mais comum do que esperar uma chuva de protestos da crítica, que, por pura má vontade ou por estar acostumada a fazer esse tipo de ataque, acaba renegando pequenas preciosidades a um gueto insignificante, a ponto, inclusive, de impedir que o público descubra essas preciosidades.

Wong Kar-Wai.
Amostras há diversas.

Jack Nicholson, numa cena de Ironweed.
Hector Babenco, cineasta argentino naturalizado brasileiro, foi surpreendido com uma recepção imerecidamente fria quando reuniu Jack Nicholson e Meryl Streep no fatalista Ironweed (idem, 1987) e não esperava o fracasso monumental de seu memorável Brincando nos Campos do Senhor (At Play in the Fields of the Lord, 1991).
Walter Salles não se deu nada bem em sua experiência no Terror. Água Negra (Dark Water, 2005), estrelado pela sempre competente Jennifer Connelly, foi um fracasso.

A atriz Jennifer Connelly, recebendo instruções do diretor Walter Salles, durante a filmagem de uma cena de Água Negra.
O francês Louis Malle, por sua vez, apresentou uma filmografia bem irregular, em que obras festejadas como Menina Bonita (Pretty Baby, 1978), com Brooke Shields interpretando uma ninfeta, e Atlantic City (idem, 1980) se alternaram com as críticas negativas dos notáveis A Baía do Ódio (Alamo Bay, 1985) e Tio Vânia em Nova York (Vanya on 42nd Street, 1994).

Em Menina Bonita, cuja ação se passa em 1917, durante os últimos meses da prostituição legal em Storyville, o distrito da luz vermelha de Nova Orlenas, Louisiana, Brooke Shields interpreta Violet, a filha de uma prostituta que trabalha num elegante bordel.

Cartaz original (estadunidense) de Tio Vânia em Nova York.

Cartaz francês de Paris, Texas.
Já o alemão Wim Wenders, após realizar Paris, Texas (idem, 1984), uma obra-prima sobre os marginalizados da América, viu seus trabalhos em língua inglesa serem isolados sem a menor cerimônia. Com isso, O Hotel de Um Milhão de Dólares (The Million Dollar Hotel, 2000), Medo e Obsessão (Land of Plenty, 2004) e Estrela Solitária (Don’t Come Knocking, 2005), filmes no mínimo interessantes, encontram-se à espera de um resgate depois de lançamentos malsucedidos.

Cartaz original (estadunidense) de O Hotel de Um Milhão de Dólares.
Bem, é com o melhor filme de Wenders, o já citado Paris, Texas, que Um Beijo Roubado, a apaixonante transição de Wong Kar-Way para Hollywood, guarda certas lembranças. Mas isso não significa, de modo algum, alusão a plágio. A constatação aqui é somente no sentido de que a fita dirigida pelo asiático evoca as imagens sedutoras da película do alemão. Imagens sedutoras essas advindas de ambientes capazes de oferecer – ao mesmo tempo – aconchego e opressão. Um Beijo Roubado também traz imediatamente à lembrança os olhares sedutores que Harry Dean Stanton e Nastassja Kinski registraram em Paris, Texas, filme ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1984.

Harry Dean Stanton, numa cena de Paris, Texas.

Na foto acima, produzida a partir de um fotograma de Paris, Texas, a atriz Nastassja Kinski.
Da mesma forma que Wenders, Kar-Wai demonstra aquele olhar estrangeiro sobre coisas tão norte-americanas, num véu de sensibilidade e poesia que pareciam definitivamente sepultados no cinema romântico dos anos 2000, salvo vez ou outra por uma Sofia Coppola, com seu Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003) ou pelo próprio Kar-Wai, com seu afamado Amor à Flor da Pele (Fa Yeung Nin Wah, 2000), que, segundo o jornal New York Post, é “elegante e profundamente sexy de uma maneira deliciosamente proibida”.

Uma cena de Amor à Flor da Pele.
Num filme que dispõe a tratar da melancolia do amor perdido e da constatação de que não resta outra saída senão ocupar corpo e mente com essa tarefa ingrata e custosa que é seguir adiante, o espectador é geralmente tratado como uma perfeito imbecil e soluções milagrosas e artificiais são despejadas sem contenções, para evitar qualquer discussão mais apurada da situação. Entretanto, não se pode culpar os produtores por usarem tal artifício, uma vez que a plateia, sobretudo aquela formada por mulheres que consomem exclusivamente esse tipo de filme, exige total desprendimento em fitas românticas. Assim, nenhuma fórmula pode ser desafiada. E o desfecho só pode ser aquela bobagem calculada, que, por fim, é oferecida. Um pouco de raciocínio e rejeição às ideias preestabelecidas são recursos tratados com desconfiança e sequer cogitados. Utilizá-los? Nem pensar. E é nesse deserto de romances, que arrebatam pela simplicidade de sua verossimilhança, que Um Beijo Roubado apresenta-se como uma miragem altamente bem-vinda. É um filme que recorre, sem enfeitar, àquele otimismo nas relações, contando com uma paixão contagiante do diretor e dos atores principais em endossar o relato.
Um Beijo Roubado é estrelado pela cantora Norah Jones (nascida Geetali Norah Jones Shankar), cuja estreia no cenário musical ocorreu em 2002, com o lançamento do álbum Come Away with Me, que vendeu em todo o mundo cerca de vinte e sete milhões de cópias.
Abre um parêntese.
Misturando Jazz, Country alternativo, Blues e Folk, Come Away with Me rendeu a Norah Jones cinco prêmios Grammy, incluindo Gravação do Ano, Álbum do Ano, Melhor Álbum Vocal de Pop e Artista Revelação. Com isso, Norah tornou-se a primeira artista de ascendência sul-asiática (seu pai, o citarista e compositor indiano-bengali Ravi Shankar, ficou famoso na segunda metade da década de 1960, ao colaborar com astros da música, como a banda inglesa The Beatles) a ganhar tantas láureas nessa premiação.

Capa do álbum Come Away with Me.
Fecha o parêntese.
Em Um Beijo Roubado, Norah Jones interpreta Elizabeth, jovem de coração partido que, no início, frequenta uma cafeteria nova-iorquina, cujo proprietário, Jeremy (Jude Law), é um rapaz com um histórico amoroso também mal resolvido, mas que tem uma visão serena e de certa forma inspiradora da situação. Em seguida, Elizabeth e Jeremy passam a compartilhar impressões e histórias acerca da afetividade. E desse confronto, ancorado no respeito, o filme tira sua motriz.

Jude Law e Norah Jones, numa cena de Um Beijo Roubado.
Os diálogos travados entre Elizabeth e Jeremy são brilhantes. Alguns são, até mesmo, inesquecíveis. Por exemplo, em certa ocasião, o rapaz filosofa sobre a desilusão de Elizabeth, recordando que, quando criança, sua mãe sempre o alertava para permanecer num só lugar, caso se perdesse durante seus passeios no parque. “E funcionava?”, indaga Elizabeth. “Mais ou menos. Às vezes, ela se perdia, ao me procurar!”, responde Jeremy.
A constatação de que somos todos ingênuos em acreditar que existe uma segurança inviolável nas relações e que o aflorar de um novo eu inicia-se no exato momento em que essa ilusão é rompida parece ser a tônica dominante no registro de Kar-Wai.
Depois, a narrativa ruma para dois ambientes, nos quais Elizabeth, assumindo o papel de observadora, vai encontrar em seu coração fragilizado uma oportunidade de redescoberta de si própria, ainda que ela sequer perceba ou imagine isso e use sua decisão de comprar um carro como motivo para seu isolamento, traduzido numa rotina de trabalho (que a ocupa dia e noite) de garçonete.
Tão logo deixa Jeremy e Nova York, Elizabeth parte para Memphis, Arizona, onde se depara com o policial Arnie Copeland, interpretado por David Strathairn, o ótimo ator de Boa Noite e Boa Sorte (Good Night, and Good Luck, 2005).
Arnie foi abandonado por sua bela esposa, Sue Lynne.
Abre outro parêntese.
A intérprete de Sue Lynne Copeland, Rachel Weisz, está exemplar em sua composição de mulher desgastada.

Rachel Weisz e Norah Jones, numa cena de Um Beijo Roubado.
Fecha esse parêntese.
Bem, desde que foi abandonado pela esposa, Arnie entregou-se ao vício da bebida.
Elizabeth mantém um vínculo com Arnie. Mas tal relação não interfere ou impede a consequência que, por fim, é oferecida. O diretor extrai um misto de fúria e paixão, daqueles de manter o espectador atento e prostrado, em parte devido aos atores envolvidos.
O próximo destino de Elizabeth: os cassinos de Nevada, onde Leslie (Natalie Portman) uma sensual jogadora de pôquer, torna-se sua amiga, a despeito de suas diferenças.

Natalie Portman, interpretando a jogadora Leslie, em Um Beijo Roubado.
Esse é o segmento menos inspirado do filme. E seu otimismo pode soar como uma concessão imperdoável aos finais felizes hollywoodianos. Mas, até lá, Kar-Wai já conquistou a afeição do espectador, a ponto de não restar qualquer queixa sobre sua condução. Além do mais, não seria o caso de elogiar um ser humano que decide não mudar sua decisão de confiar nas pessoas, mesmo cercado por quem o encoraje a fazer o contrário? Um Beijo Roubado entrega esse registro, sem apresentar-se como uma defesa à ingenuidade ou dar a impressão de que a plateia foi manipulada.
Eis um filme para ser admirado por sua cacofonia rara. É impossível não o deixar, sem a lembrança deliciosa das canções escolhidas a dedo para pontuar a jornada de Elizabeth. A música aqui se integra às cenas com uma precisão indiscutível, mesclando a voz brilhante de Cat Power (ela tem uma pequena participação na fita) e Cassandra Wilson com os acordes exímios de compositores como Ry Cooder e o argentino Gustavo Santaolalla.

A cantora e compositora Cat Power (nome artístico de Charlyn Marie Marshall, também conhecida como Chan Marshall), numa cena de Um Beijo Roubado.
Falando em cantoras, Norah Jones prova ter carisma e talento para uma segunda carreira: a de atriz. Em nenhum momento, Norah, considerada uma das revelações da música norte-americana da primeira década do século 21, apresenta-se como alguém despreparado recitando diálogos. Ela incorpora todos os receios e decisões de sua Elizabeth. E faz isso com extrema delicadeza, além de acompanhar com maestria sua mudança gradual.

Norah Jones, a grande revelação de Um Beijo Roubado.
Sem dúvida alguma, Um Beijo Roubado é uma obra-prima. No entanto, haverá aqueles que dirão ser um filme europeu (ou asiático, se preferirem) para americano ver, ressaltando o quanto as obras anteriores de Kar-Wai são superiores. Se um cineasta oriental entende que a omissão silenciosa é o registro mais correto para inserir nas fitas que realiza em seu país de origem, nada mais natural que, ao produzir um filme no Ocidente, seus personagens não hesitem em verbalizar e exceder-se. Esse mimetismo é o grande fascínio no cinema de Kar-Wai, e nada seria mais injusto do que Um Beijo Roubado não estar num lugar bem à frente em sua filmografia.

Mais uma cena de Um Beijo Roubado, mostrando Jude Law e Norah Jones.
Concluindo: preparem-se para o tal beijo que coroa a história. Segundo o crítico Luiz Carlos Merten, num texto publicado no jornal O Estado de S. Paulo, esse “beijo vai entrar para a História”. E devo acrescentar que irão demorar para equiparar sutileza assim!

A foto acima mostra Jeremy roubando um beijo de Elizabeth.
Um Beijo Roubado (My Blueberry Nights, Estados Unidos, 2007, 95’)
Direção: Wong Kar-Wai
Roteiro: Wong Kar-Wai & Lawrence Block, a partir de uma história de Wong Kar-Wai
Fotografia: Darius Khondji
Montagem: William Chang Suk Ping
Música: Ry Cooder
Elenco: Norah Jones (Elizabeth), Jude Law (Jeremy), David Stratairn (Arnie Copeland), Rachel Weisz (Sue Lynne Copeland), Natalie Portman (Leslie), Cat Power (Katya), John Malloy, Frankie Faison, Demetrius Butler, Adriane Lenox, Chad Davis, Katya Blumenberg, Michael Hartnett, Michael May, Benjamin Kanes
Observação: Wong Kar-Wai desejava filmar as sequências de Um Beijo Roubado na ordem, ou seja, da primeira à última. Entretanto, quando descobriu que Rachel Weisz, que tinha sido escolhida para representar Sue Lynne, estava grávida, ele concordou em filmar as cenas de Memphis por último, para dar tempo à atriz de dar à luz e se recuperar antes de começar a trabalhar.

Outra foto de Norah Jones, interpretando Elizabeth.

Rachel Weisz, interpretando Sue Lynne.
João Rodolfo Franzoni é jornalista e professor.