ASILO SINISTRO, UM CLÁSSICO DO HORROR – PARTE UM

R. F. Lucchetti
Edição: Marco Aurélio Lucchetti

Cartazete original (estadunidense) do filme Asilo Sinistro.
Em 1942, Charles Koerner, recentemente nomeado chefe de produção da RKO Radio Pictures, decidiu que o estúdio devia seguir o exemplo da Universal e produzir filmes de Horror. Então, contratou Val Lewton, que, durante cerca de oito anos, havia trabalhado como editor de roteiros nos estúdios do produtor David O. Selznick (David Oliver Selznick, 1902-1965), e encarregou-o de produzir uma série de filmes de Horror de baixo custo. Cada fita teria aproximadamente setenta e cinco minutos de duração e seria destinada aos programas duplos dos cinemas norte-americanos.

Val Lewton.
Imediatamente, Val Lewton disse para si mesmo: “Eles podem pensar que vou fazer o tipo usual de filme de Horror, que obtém renda imediata, provoca risos na plateia e é esquecido rapidamente. Mas estão enganados. Vou realizar o tipo de filme de Suspense que aprecio.” E, ao invés das costumeiras histórias de vampiros, lobisomens e monstros criados por cientistas querendo ser Deus, Val Lewton optou por levar às telas dos cinemas narrativas relacionadas com algum medo ou superstição universal, sempre procurando obter a expressão cinematográfica do horror por meio da sugestão e o uso dramático de sons, silêncios e ecos. E os nove filmes de Horror que produziu na RKO formam, como afirmou o crítico Carlos Fonseca (Carlos do Amaral Fonseca, 1930-2006), “a mais extraordinária coleção de horror da história do Cinema”.
Recebendo de salário duzentos e cinquenta dólares por semana, Val Lewton supervisionava cada detalhe da produção. Exigia que os desenhistas de cena, os encarregados do vestuário, os maquiadores… enfim, todos os profissionais envolvidos na feitura de seus filmes dessem o melhor de si. E o extremo cuidado que dedicava à produção das fitas pode ser comprovado ao se assistir, por exemplo, à ultima película de Horror que produziu na RKO: Asilo Sinistro (Bedlam), cujas filmagens foram realizadas entre 18 de julho e 17 de agosto de 1945 e que estreou nos cinemas dos Estados Unidos em 1946 [em seu livro Val Lewton– The Reality of Terror (Londres, Secker & Warburg/British Film Institute, 1972, pp. 81 e 160), o professor universitário e pesquisador Joel E. Siegel (1940-2004) afirma que Asilo Sinistro estreou nos cinemas dos Estados Unidos em abril de 1946].
O roteiro de Asilo Sinistro foi escrito por Val Lewton (ele o assinou com o pseudônimo de Carlos Keith) & Mark Robson.
Abre um parêntese.
Mark Robson (1913-1978) participou da equipe de produção de sete dos nove filmes de Horror que Val Lewton produziu na RKO. Em três [Sangue de Pantera (Cat People, 1942, direção de Jacques Tourneur), A Morta-Viva (I Walked with a Zombie, 1943, direção de Jacques Tourneur) e O Homem-Leopardo (The Leopard Man, 1943, direção de Jacques Tourneur)], como montador; e, em quatro [A Sétima Vítima (The Seventh Victim, 1943), O Fantasma dos Mares (The Ghost Ship, 1943), A Ilha dos Mortos (Isle of the Dead, 1945) e Asilo Sinistro], como diretor.

Christine Gordon, Frances Dee e Darby Jones, numa cena de A Morta-Viva, um dos filmes que Val Lewton produziu e Mark Robson dirigiu.
Fecha o parêntese.
E, para escreverem o roteiro, Lewton & Robson inspiraram-se em “The Madhouse”, uma gravura do pintor, gravador e ilustrador inglês William Hogarth (1697-1764).

“The Madhouse” (óleo sobre tela, 62,2 x 74,9 cm).
Essa gravura, a oitava de uma série de oito intitulada A Rake’s Progress, foi feita entre 1733 e 1734 e pertence atualmente ao acervo do Sir John Soane’s Museum, de Londres.
Asilo Sinistro tem como cenário Londres e mostra como os loucos eram tratados no lúgubre St. Mary’s of Bethlehem Asylum, nos primeiros anos da segunda metade do século 18. Naquela época, a loucura era considerada um flagelo divino; e os que sofriam desse mal eram desprezados, ridicularizados, maltratados, torturados e atirados em manicômios imundos e tenebrosos. É nesse ambiente asfixiante que, ao lado da figura do supervisor do hospício, o sádico e ambicioso Mestre Sims, [magnificamente interpretado por Boris Karloff (nome artístico de William Henry Pratt, 1887-1969), que um ano antes, em O Túmulo Vazio (The Body Snatcher, direção de Robert Wise), filme também produzido por Val Lewton e baseado numa história do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), havia encarnado soberbamente um cruel e cínico ladrão de túmulos], aparecem: o rico e obeso lord Mortimer (Billy House), um pobre de espírito e hipócrita que pensa que o dinheiro pode comprar tudo; Nell Bowen (Anna Lee), uma jovem e bela atriz que acaba sendo internada em St. Mary’s por ter afrontado Mestre Sims, humilhado publicamente lord Mortimer (até então, ele era seu protetor e mecenas) e haver sugerido que os loucos tivessem um tratamento menos desumano no asilo; e o quaker William Hannay (Richard Fraser), uma das poucas pessoas dispostas a ajudar Nell a sair do hospício. Com esses quatro personagens, desenvolve-se toda a trama da fita, numa atmosfera cada vez mais tensa e sombria.

Anna Lee (nascida Joan Boniface Winnifrith, 1913-2004) e Boris Karloff, numa cena de Asilo Sinistro.

Lord Mortimer (Billy House).

Richard Fraser (1913-1972) e Anna Lee, numa cena de Asilo Sinistro.
Asilo Sinistro impressiona pela sua linguagem cinematográfica extremamente apurada. Cada uma de suas cenas se parece com um quadro. É um filme de imagens.
Abre um novo parêntese.
Na minha opinião, as imagens são o mais importante numa fita, porque são elas que o espectador retém na mente, após o término do filme.
Não canso de repetir: o Cinema é a arte da expressão pela imagem. O Cinema é essencialmente a arte de criar belas imagens. No entanto, nem todos os cineastas compreenderam ou compreendem isso.
Certa vez (creio que o fato ocorreu em 1987), recordando-me da fita Alexander Nevski (1938, direção de Sergei Eisenstein), cujas cenas se assemelham a quadros, falei para um pretenso diretor: “O verdadeiro cineasta deve criar cada cena de seu filme como se estivesse produzindo um quadro.” O sujeito, então, olhou-me espantado, como se eu tivesse acabado de proferir um despautério. Também eu não poderia esperar uma reação diferente, já que ele era e, certamente, ainda é um fanático por filmes estrelados por atores com expressão apalermada e dicção parecida com a de um ser mecânico.

Uma cena de Alexander Nevski.
Agora, completando meu pensamento: no Cinema, não importa muito o que vai ser contado, e sim a forma como isso vai ser contado. Ou seja, a forma reveste o conteúdo.
Fecha esse novo parêntese.
E, antes de encerrar a primeira parte deste meu texto, quero dizer algumas palavras a respeito de Val Lewton.
Nascido em Ialta, na Crimeia (península da Ucrânia atualmente ocupada pela Rússia), em 7 de maio de 1904, Val Lewton (nascido Volodymyr Ivanovich Leventon) emigrou, com a família, para os Estados Unidos em 1909.
Ele era sobrinho de uma das grandes estrelas do cinema mudo norte-americano: Alla Nazimova (nascida Mariam Edez Adelaida Leventon, 1879-1945), que atuou nos palcos teatrais e foi produtora e roteirista de filmes.

Alla Nazimova.
Além de roteirista e produtor, Val Lewton também foi escritor. Escreveu nove romances: The Improved Road (1924), Rape of Glory (1931), The Fateful Star Murder (1931, publicado sob o pseudônimo de Herbert Kerkow), Where the Cobra Sings (1932, publicado sob o pseudônimo de Cosmo Forbes), No Bed of Her Own (1932), Four Wives (1933, publicado sob o pseudônimo de Carlos Keith), Yearly Lease (1933), A Laughing Woman (1933, publicado sob o pseudônimo de Carlos Keith) e This Fool Passion (1933, publicado sob o pseudônimo de Carlos Keith).
Creio que de todos os romances escritos por Val Lewton o que alcançou maior sucesso tenha sido No Bed of Her Own. Foi traduzido para diversas línguas, inclusive o Português. Aqui, em nosso país, apareceu, com o título de Sem Cama Própria, numa edição lançada provavelmente em 1933 ou 1934 pela editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro. A tradução coube a Edgard M. Lobato. E, na orelha de Sem Cama Própria, há a seguinte descrição da história narrada no livro:
“SEM CAMA PRÓPRIA, o romance de VAL LEWTON, o maior sucesso na América do Norte, mostrará aos leitores o que é a bravura e a capacidade de sofrimento de uma moça dos nossos dias, obrigada a mendigar trabalho, a suportar a grosseria de enamorados passageiros e a viver sem lar, à procura de pão.
ROSE MAHONEY, a heroína de SEM CAMA PRÓPRIA, vendeu-se, para levar um frasco de remédio a uma criancinha que agonizava.
Ela não tinha apenas fome de amor e dedicação: tinha fome de pão para a boca.”
Possuo em minha biblioteca um folheto de propaganda da Civilização Brasileira. É um folheto de quatro páginas, anunciando os lançamentos da editora. Um dos lançamentos é justamente Sem Cama Própria.
Não sei como o referido folheto chegou às minhas mãos. Mas acho oportuno e interessante transcrever parte do comentário feito sobre Sem Cama Própria:
“Este livro obteve na América do Norte um êxito retumbante. Descreve as dolorosas aventuras de uma mulher moderna, obrigada a ganhar a vida para o próprio sustento e sofrendo sempre… por ter que dormir na cama dos outros. Aparecem aqui os novos costumes norte-americanos. Nova York, seus prazeres e suas misérias! A perdição de tantas moças inexperientes e que têm fome… É um livro que não pode cair em mãos inocentes, mas deve ser lido por todas as mulheres que gostam de se instruir, porque Sem Cama Própria é uma lição formidável.”

Capa de uma edição (em formato de bolso) de No Bed of Her Own. Edição essa lançada em 1950 pela Novel Publications, de Chicago.
Val Lewon faleceu em Hollywood, em 14 de maio de 1951, em decorrência de um ataque do coração.
R. F. Lucchetti (Rubens Francisco Lucchetti, 1930-2024) foi ficcionista e roteirista de Cinema & Quadrinhos.